Mafra: uma fachada paradoxal e imortalizada no/do tempo
“Podemos fugir de tudo, não de nós próprios.” E fugir de si mesma não pode Mafra, nem o seu Convento, nem o sonho do homem e/ou suor dos homens por detrás da sua construção. Foi esta a conclusão a que cheguei ao sair pelas portas do Palácio no dia 20 de outubro (mentira, apercebi-me agora mesmo, mas, enfim, retórica).
Devo, antes de mais, explicar que, para mim, não seria justo (apesar de inevidente se não feito) ignorar a inclinação de Saramago para o valor alegórico, o valor simbólico da individualidade de tudo, de modo a pintar um plano de fundo metaforicamente quase físico. Eis onde quero chegar, se ainda não está claro: servir-me-ei também um pouco dessa abordagem ao elaborar este relatório no que toca à tradução da minha experiência, especialmente, na visita ao Convento e Palácio.
Mafra só mente se não estivermos atentos. É deste modo que justifico parcialmente o meu título (“fachada”): desde a chegada, que entendemos que Mafra é o Convento “e o resto é paisagem”. Claro que isto é um exagero: tal como na obra se dá relevância e valor exatamente à “paisagem”, às vidas e histórias das pessoas que, à primeira vista, parecem insignificantes, àqueles que esquecemos quando estamos prostrados perante a magnificência do Convento, as vidas daqueles que veem Mafra como a sua casa também constituem parte da identidade da cidade. O que quero dizer é que esta obra arquitetónica (e o mito, o ‘fantástico’, envolvente e por ela preconizado) transformou-se numa espécie de núcleo, num elemento não só irradiador de idiossincrasia como também de transferência dessa mesma particularidade para tudo o que a rodeia. Virássemos nós as costas ao Convento, ainda veríamos Mafra. Tendo lido o romance, veríamos ainda a miséria da Ilha da Madeira e, com sorte, Blimunda e Baltasar subindo a rua até nós. Virássemos nós a fronte para o Convento, ainda veríamos D. João V a abençoar a primeira pedra, ainda veríamos as centenas, se não milhares, de homens empurrados para o chão pelo seu próprio suor. Veríamos ainda, quem sabe, pelo canto do olho, Saramago a fazer o mesmo que nós: a ver. Não só o que estaria à nossa frente neste cenário hipotético, mas o que teria estado lá antes. Vemos o passado de Mafra.
[…]
Porquê? Porque, por momentos, ao examinar as minhas mãos nas paredes e o meu reflexo nas janelas e os meus pés no chão, vi as mãos, o reflexo e os pés de D. João V nas mesmas paredes, nas mesmas janelas e no mesmo chão. Imaginei como seria ser o rei e o que ele veria, se alguma vez tivesse tido a oportunidade de se olhar no reflexo ténue das janelas: D. João V, o magnânimo, ou D. João V, o pródigo? Veria ele os rostos das centenas de homens que escravizou para cumprir o seu capricho? Veria ele o rosto de Deus, anuindo como um pai orgulhoso para um filho que cumpriu o seu destino? Veria ele o futuro que nunca foi?
Durante a visita não pude deixar de ver Mafra. A Mafra que foi, a Mafra que é, e a Mafra que poderia ter sido: o resultado de uma fachada será sempre, inevitavelmente, uma fachada. Ou, então, não. Ou então não podemos recusar a verdade de nada, enquanto essa verdade o for para alguém. Quem sou eu para caracterizar a Mafra de D. João V, de Blimunda e de Baltasar, ou muito menos de Saramago? O cerne da questão estará no filtro, ou melhor, na lente que colocamos sobre os nossos olhos quando realmente vemos. Inquestionável, tanto quando essa mesma lente é voluntária ou inata.
“(…) este é o dia de ver, não de olhar, que este pouco é o que fazem os que, olhos tendo, são outra qualidade de cegos.”
Beatriz, 12º D
Uma perspetiva diferente sobre o “Memorial do Convento”
Peça de Teatro
Para quem não conhece a obra de José Saramago, o primeiro contacto com o “Memorial do Convento” causa alguma estranheza pelo estilo da linguagem utilizada. Para além das frases serem, por vezes, extensas, a vírgula e o ponto final são os únicos sinais de pontuação usados. Contudo, nem essa designação têm. São, como diz o próprio Saramago, “sinais de pausa”. Acrescenta, ainda, “toda a fala e toda a música se escrevem com sons e pausas”. Então, percebe-se uma intenção de aproximar a escrita à fala. É por isso que o emblemático livro já não causa estranheza nenhuma quando é representado em palco.
O romance passa-se durante reinado de D. João V, no século XVIII, tempo em que vigorava a Inquisição em Portugal. Parece difícil de acreditar, mas há trezentos anos eram condenadas à fogueira pessoas “persistentes nos erros que são suas verdades, só desacertadas no tempo e no lugar”. Era um tempo em que ser diferente era visto de lado pela maioria, em que semelhante injuriava semelhante só por não seguir a norma. Mas, curiosamente, é uma figura religiosa, o Padre Bartolomeu de Gusmão, que no “Memorial do Convento” desafia a convenção. Ele, que já em 1709 tinha elevado um balão de ar quente perante o espanto da corte, estava a construir uma máquina para os homens voarem, a que davam o nome de “passarola”, por escárnio. Consequentemente, foi perseguido pelo tribunal do Santo Ofício, que considerava voar uma arte do demónio. Inflexível nas suas convicções, é particularmente contagiante o seu entusiasmo pela técnica e pela ciência na peça de teatro. O que o seu grande projeto nos mostra é que o poder de voar depende da vontade dos homens, a capacidade de ir mais além depende da perseverança humana. O Padre Bartolomeu é, então, uma personagem visionária, cujo horizonte de vista supera a estreiteza das ideias da Inquisição.
Francisco Dias, 12.ºA
A Viagem a Mafra
Desde o princípio em que Blimunda conhece Baltasar no meio de um auto-de-fé até ao fim em que Blimunda avista Baltasar a ser vítima de um auto-de-fé que estive investido na peça, sempre expectante do que iria acontecer a seguir… mentira, estou a iludir-me. A verdade é que foi só a partir de uma cena que a peça captou a minha atenção, e foi um feliz acaso aparecer no início da peça senão teria perdido uma ótima peça! Estou a falar da primeira vez que Blimunda recebe Baltasar em sua casa, momento que passa despercebido pela maioria de vós pelo facto de o diálogo ser escasso e servir apenas para aludir ao poder de Blimunda. Contudo, o que não é dito em voz alta fica subentendido na expressão corporal dos personagens e no silêncio entre eles, aspeto que me fascinou quando o constatei. De facto, fiquei admirado pelo modo como os atores deixaram implícito o amor que as personagens sentiam uma pela outra sem recorrerem a palavras muito elaboradas ou gestos românticos, somente através de um silêncio partilhado por eles, que fugia à armadilha de se tornar incómodo, e da maneira como se arranjavam na cama, como Blimunda se aconchegava meigamente a Baltasar e este ficava menos tenso a seu lado, mostrando maior intimidade que qualquer beijo ou abraço pudesse transmitir. Aliás, no próprio romance também se verifica esta preferência de meios de comunicação alternativos para demonstrar a proximidade entre os protagonistas – “(…) apesar de o padre ter acabado primeiro de comer, [Blimunda] esperou que Baltasar terminasse para se servir da colher dele, (…). Por uma hora ficaram [Baltasar e Blimunda] sentados, sem falar.” (Cap. V). Neste caso, a sua relação afetiva é notória no facto de Blimunda “aceitar para a [s]ua boca a colher de que se serviu [Baltasar]” (Cap. V) e, mais uma vez, pelo silêncio que partilham. Assim, graças a gestos simples e bem contextualizados, pude apreciar a peça e vencer o sono.
Eduardo Nogueira, 12.º A
Na tarde do dia em que nos deslocamos a Mafra, fomos levados numa visita guiada pelo Palácio Nacional. Ao penetrarmos no seu interior, a nossa guia pertinentemente apontou para a laje que, na frontaria do edifício, se destacava pelo seu tamanho. Tal pedra, irrelevante para o olhar mais desatento e menos perspicaz, tratava-se nem mais nem menos de um dos principais motivos da obra que ali nos conduzira. Aquando da construção do convento, o autor retrata o carregamento de uma pedra por parte de uma gigantesca massa humana, apoiada por numerosos suportes de tração animal. Este pequeno episódio acaba por encerrar em si todo o propósito de Saramago ao redigir o seu romance, a exaltação do povo português enquanto herói, face aos caprichos mesquinhos de um rei e da sua classe dominante.
O povo dá provas da sua força e resiliência ao erguer pelas suas próprias mãos um projeto de tal envergadura, sujeito a condições de trabalho miseráveis e não condizentes com a condição humana. Durante a tarefa anteriormente referida, verifica-se, até, um sinistro. Deste modo, todos aqueles que tombaram na luta pela sua subsistência e por uma vida condigna, enquanto simultaneamente satisfaziam as vontades e os desejos de um rei, são homenageados.
Valerá uma vida humana a satisfação de um capricho ou de um qualquer ideal estético? Parece ser esta a principal mensagem da obra de um autor que, fiel aos seus princípios, apregoa uma sociedade onde um bem comum se sobrepõe aos desejos de individualidades que, donas de um poder desmedido, procuram impor a sua vontade.
Afonso Sabença, 12.º A
No primeiro encontro entre Scarlatti e o padre Bartolomeu existe uma interessante reflexão sobre a música e a sua correlação com os sermões religiosos, principalmente no que diz respeito aos seus efeitos na audiência. O italiano, cuja capacidade transcendental não se limita à música, chega a uma conclusão inesperada: “Fica o silêncio depois da música e depois do sermão, que importa que se louve o sermão e aplauda a música, talvez só o silêncio exista verdadeiramente.”.
Existe ainda outra conversa digna de referência entre os dois e que foi representada. Um diálogo que ocorre da primeira vez que o músico italiano vê a passarola, reacendendo-se o tema da música, desta feita aplicado ao princípio de funcionamento da máquina. Esta ideia surge quando Scarlatti tenta saber a origem do segredo que levantaria a máquina, sabendo que “tudo é vegetal, mineral ou animal”. “Nem tudo”, contraria o padre, a música não o é, mesmo sendo produzida por instrumentos fabricados com materiais de uma destas origens. E, quem sabe, se a música, qual vontade, não levantaria também a máquina? – “ (…) afinal pouco falta para que me erga eu ao ar quando o ouço tocar no cravo (…) ”.
Francisco Caetano, 12.ºA