Ao longo deste ensaio será abordada uma faixa do disco “Entre nós e as palavras”, onde Herberto Helder, acompanhado por uma composição musical de Rodrigo Leão, declama o seu poema “Minha cabeça estremece”. Discutir-se-á, assim, o porquê de, à luz do objetivismo estético, a obra em questão ser considerada uma manifestação artística.
Primeiramente, impõe-se apresentar os autores da obra selecionada. Rodrigo Leão, nascido em 1964, é um músico e compositor português que possui uma carreira singular, onde o trabalho que realizou enquanto membro dos Madredeus e fundador dos Sétima Legião assume particular relevo. Foi em 1997 que compôs a música que neste álbum complementa a criação poética de Herberto, a qual integra, por sua vez, o livro Poemacto II, publicado em 1961. O poeta, natural do Funchal, onde nasceu no seio de uma família de origem judaica em 1930, mudou-se para o continente com apenas 16 anos e frequentou as Faculdades de Direito e de Letras de Coimbra, não tendo, porém, concluído ambos os cursos. Anos mais tarde, deambulou pela Europa – França, Holanda, Bélgica -, países onde, por optar por um estilo de vida frugal, exerceu voluntariamente profissões pobres e marginais. Nas suas viagens, cruzou-se novamente com Lisboa e conheceu ainda o Alentejo, Espanha, Dinamarca, Estados Unidos e até Angola, onde trabalhou como repórter de guerra. Herberto Helder, considerado o maior poeta da segunda metade do século XX, morreu, em 2015, como viveu: no mais cioso dos anonimatos.
Na obra em análise, a gravação do poema “Minha cabeça estremece” é central. A construção temática e linguística do mesmo constitui-se num processo alucinatório que se traduz num verdadeiro entremeado de imagens desconexas e inesperadas profundamente desconcertante. O leitor sucumbe, pois, a uma sinestesia arrebatadora, despoletada pela irracionalidade e pelo surrealismo do texto poético, o qual desperta a visão (“As cadeiras ardiam nos lugares”), a audição (“O leite cantante”), o gosto (“E a morte passa de boca em boca/ com a leve saliva”) e o tacto (“Apalpo agora o girar das brutais/ líricas rodas da vida”). Somos reduzidos a “um pedaço extasiado” de carne a partir do qual nos edificamos. Note-se que na poesia herbertiana, o conhecimento sensorial ascende a conceptual, na medida em que o sentido denotativo da palavra veicula o seu sentido conotativo. Através de um exaustivo processo de reiteração, ao qual são submetidos vocábulos como “rosa” e “peixe”, Herberto esvazia a palavra de significado, purifica-a e silencia-a, injetando-lhe, deste modo, novas aceções, e restaurando-lhe a presença diluída pela comunicação quotidiana. Veja-se que o sensacionismo dos versos do poeta é tal que a intimidade gerada entre a sua construção imagética e o nosso subconsciente ativa a reprodução da mesma, permitindo uma fusão do “eu” com a palavra. Desta forma, à sua semelhança, abstraímo-nos de toda e qualquer significação, para depois também a nossa presença nos ser restituída. Caminhamos para um espaço de construção do ser onde, por se ser exaustivamente, se deixa de ser.
Este mesmo processo de supressão da substância interior decorre de um regresso à génese, ao “fundo informulado de uma vida”, que se apresenta, em “Minha cabeça estremece”, como a infância. Esta é retratada por Herberto como um entrelaçado de reminiscências, imagens que retêm a eternidade de um instante passado – um “esquecimento” ou “lembrança/ total das coisas”. Deparamo-nos, então, por exemplo, com a imagem da “mãe sombriamente pura”, a qual explode na expressão helderiana por ser como que incessantemente perseguida pelo poeta, cuja própria mãe faleceu quando este possuía apenas oito anos de idade. O reviver da sua infância neste poema denota, pois, a obsessão de Herberto pelo primordial, ponto de partida para a requalificação da interioridade e da linguagem. Assim, a desconstrução (“Eu agora mergulho”) e construção (“e ascendo como um copo. Trago para cima essa imagem de água/ interna”) existencial dá-se paralelamente à desconstrução (“Caneta do poema dissolvida no sentido/ primacial do poema”) e construção (“Ou o poema subindo pela caneta, atravessando seu próprio impulso”) poética.
A composição musical de Rodrigo Leão surge inteiramente subordinada à voz grave de Herberto Helder, criando uma inquietante tensão melódica que amplifica a intensidade do discurso poético. Note-se que toda a melodia é concebida em torno da repercussão quase sistemática de certos acordes, a qual se afigura ao movimento incessante de sístole e diástole do músculo cardíaco. Este remete para o encadeamento dos cenários visuais na poética helderiana, constituindo, deste modo, uma continuidade da linguagem quase prosaica e indiscutivelmente plástica do poeta. Encontramos também, novamente, neste pulsar, porquanto básico e fundamental, a ideia de redução do “eu” ao primitivo, motivo pelo qual a música de Rodrigo Leão produz uma atmosfera potenciadora da absorção sensorial da matéria física poetificada por Herberto.
Pelo exposto, o enquadramento desta obra no objetivismo estético surge naturalmente. Consideramos, deste modo, que a experiência estética desta faixa de “Entre nós e as palavras” é induzida pelas propriedades estéticas que lhe são intrínsecas. No entanto, dado que nem todos possuem as capacidades necessárias as para percecionar, as mesmas não serão universalmente aceites e, por isso, a beleza da obra não será consensual. Veja-se que a obscuridade da poesia de Herberto Helder, hermética e experimental, é concomitantemente luminosa, incandescente até, cabendo ao leitor o papel de a descodificar. Caso este não seja dotado do conhecimento e da sensibilidade exigidos por esta tarefa, não será capaz de reconhecer o valor artístico da obra. Assim sendo, não julgamos aceitável que o mesmo se encontre inteiramente dependente do juízo estético alheio, mas defendemos, sim, a posição de que a beleza de uma obra reside nela própria.
Concluindo, acreditamos que a conjugação da composição poética de Herberto Helder com a música de Rodrigo Leão se apresenta como uma manifestação artística, na medida em que apura a perceção do “eu”. Realce-se que o mutismo que na mesma é alcançado por meio do emudecimento da linguagem e das emoções que nos alicerçam se apresenta como um meio condutor privilegiado da palavra na sua forma mais pura. A escolha desta obra decorreu, assim, da necessidade imperiosa, suscitada por um primeiro contacto com a expressão helderiana, de aceder ao que ultrapassa o palpável e, assim, requalificar a nossa interioridade. Somos, pois, irremediavelmente atraídos pela opacidade do metafísico e daí metamorfoseados por uma “devastação inteligente” – autêntica obra de arte.
Beatriz Magalhães, 10.º A
- Bibliografia
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