A minha experiência estética de “Ascensão” de Rui Chafes – Parte III

“Ascensão”, Rui Chafes (Igreja de S. Cristóvão, Lisboa)

O que faz uma escada de mão no meio de uma igreja? Qual é o seu propósito a nível sacro-religioso? A primeira reação de muitos seria criticar uma obra de arte pouco tradicional numa igreja tão tradicional. Eu não sigo esse caminho, porque procuro entender o porquê das igrejas serem muitas vezes quase museus. E daí ter que pensar sobre a pertinência da arte no encontro com a divindade e os seus limites.

Que a arte sempre esteve ligada à religião creio não restarem dúvidas. Há historiadores que defendem mesmo que a música surgiu na Pré-História como meio de encontro dos hominídeos com as divindades. A música servia como um mantra. As esculturas do homem do Paleolítico são Vénus, ou seja, um culto à fertilidade através da arte. E os exemplos são vastos até aos nossos dias: desde uma pietà, uma Basílica de São Pedro, as missas de Notre-Dame, entre muitos outros. Pergunto-me, porém, se há necessidade de tudo isto para o Homem se encontrar com Deus.

Creio que necessidade não há, o homem consegue procurar o divino sem a ajuda da arte. Mas esta tem um papel importante na religião, embora se tenham cometido grandes excessos proselíticos.

[Um dos meus professores de música tinha um aluno que não ouvia nem conhecia o Requiem de Mozart e as Paixões de Bach que chegaram aos nossos dias, o que é basicamente uma vida musical quase sem sentido. E esse meu professor dizia “se há prova que Deus existe está aí”. E sempre me interroguei sobre a ligação de Deus à arte. Parece-me que há várias de formas de chegar até Deus. E a arte pode ser uma delas, se respeitar algumas condições.]

Ou seja, a arte sacra faz sentido, na medida em que nos obriga a parar e a contemplar a beleza que me parece estar ligada a Deus, porque é como que um preenchimento da criação. Vejo muito a criação como uma dimensão inacabada, talvez uma proposta a completá-la. E o artista e aquele que se preocupa com a arte são, no fundo, agentes que completam a criação divina. Porque quando se cria cria-se algo que não existia anteriormente, logo a partir daquele momento existem (em forma) mais aspetos da Criação e esta é cada vez maior. E nesse sentido há um compromisso do Homem com Deus.

Além disso, muitas vezes dizemos que a arte é intemporal e de certa forma nesse sentido é semelhante a Deus: “Eu sou o Alfa e o Ómega”. Ou, como disse no início da reflexão, talvez o olhar seja intemporal.

Por outro lado, a arte sacra torna-se muitas vezes uma humanização de Deus, como uma entidade cujo poder é igual ao de um imperador, o que não me parece fiel, sendo que aquilo que Cristo pregou foi um Deus de misericórdia, e não um tirano que transparece, por exemplo, na Basílica de São Pedro do Vaticano. Esta Basílica é belíssima, mas profana. Serviu não para uma questão de fé, mas para uma questão política. Se virmos o contexto em que foi construída rapidamente o percebemos: reforma de oposição ao protestantismo. Esta e essencialmente as construções barrocas em que predomina o equivalente à Doutrina dos Afetos, defendida pela Camerata Fiorentina, tinham um poder proselítico enorme. Todo o arrebatamento causado por várias obras de arte fazia com que os fiéis se tornassem cada vez mais sujeitos ao poder da Igreja Católica. E evidentemente, nesse caso, a arte serve um propósito corrupto. Acredito que não seja o caso da Ascensão. Esta usa materiais simples e promove a reflexão e não apenas uma sensação epidérmica de pequenez como a Basílica. Está relacionada com o Catolicismo  na medida em que promove um conhecimento interior, indispensável ao conhecimento do outro.

Há momentos da História em que Deus parece ter sido destruído, no exercício da beleza. Diz o poeta Herberto Helder “Até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza”. Nesses momentos parece que vivemos em metáforas e alegorias, em símbolos e rituais vazios, e chegamos a um ponto em que matamos Deus. E nesse momento habitamos o não-lugar. É como se de nós se desprendesse tudo aquilo que nos causou. Se a causa-prima não está presente, somos como que engolidos pela impossibilidade de existirmos. Somos tão exteriores e posteriores a nós mesmos que desaparecemos. E, portanto, não podemos deixar que nos levem para esse estado de desmemória e coma profundo. Nesses casos, a arte sacra é profana.

Aquilo que me causou confusão foi a forma daquele objeto estético, a invulgaridade do seu contexto. A forma é facilmente definível; mas a reflexão sobre a sua intenção faz-me perceber que, na verdade, esta é idêntica: as nossas questões são as mesmas de há séculos, ou incutimos no objeto estético as nossas próprias questões. A ideia é sempre relacionar o homem com Deus. A gramática que utilizamos  é acessória. Assim como há uma teoria linguística que defende que todas as línguas provêm de uma universal e por isso há palavras tão parecidas nas várias línguas, outros tipos de linguagem criativa devem ter uma origem comum, a linguagem criativa de Deus, isto interpretando como Cristão. E essa é uma ideia que tiro da constatação de uma heterogeneidade de formas e de uma homogeneidade de problemas e questões humanos.

Falta-me ainda referir aquilo que a placa rasgada por cima do túmulo para mim simboliza: o acordar, perante a perda. O túmulo é o símbolo da morte. Mas parece que o chão se insuflou da memória dos que conheciam o morto, isto é, a morte provocou a dúvida que sempre provoca. Um momento o morto estava vivo e agora está morto como se sempre tivesse vivido para estar morto. E queremos respostas. Queremos saber para onde foi o morto. Então surge um vazio, o rasgão, que se afirma cada vez mais, e vivemos na sombra da sala, na sombra da morte. A morte foi como o grito que nos acordou, e estranhamente tornou-se o grito claro. Da pior realidade surgiu a consciência do efémero.

Vivemos na nossa pequena vida, reparando em nada, e, de repente, a realidade como que embate na fronte e perdemos a fala. Porque a morte nos obriga ao silêncio. E nesse silêncio somos iguais à protagonista do conto “O Silêncio” de Sophia de Mello Breyner Andresen, que, depois de um grito que ouve, caminha naquela que é a sua casa como uma estrangeira. De certa maneira, rapidamente todos nos tornamos estrangeiros perante alguns gritos de tal forma corpulentos que exercem em nós a gravidade.

Francisco Silva, 10.ºB

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