Chuva

6

Já passavam cerca de duas horas desde que as aulas haviam acabado. Em circunstâncias normais, ter-se-ia encaminhado para casa enquanto o céu ganhava uma cor avermelhada e, eventualmente, escurecia, ficando o caminho apenas iluminado pela luz ténue dos lampiões e das lojas e cafés que ainda estivessem abertos a essa hora. Mas nesse dia era diferente. Ao invés das cores vibrantes usualmente adornando o céu, um manto cinzento de nuvens obscurecia uma miríade de tons pelos quais o céu passaria em circunstâncias favoráveis.

À beira da janela, observava o ambiente da entrada. Guarda-chuvas de várias cores, pessoas sem abrigo a correr com livros ou pastas na cabeça para se protegerem da chuva, uma paragem de autocarro a abarrotar de alunos acoitados. Provavelmente era o único que ainda não tinha ido embora, pensou. Talvez fosse melhor ir. A mãe já devia ter feito o jantar; a família já devia estar toda em casa a conversar sobre o seu dia; certamente estariam preocupados com ele. Porque hesitava tanto, então?

Nesse momento, uma luz imaculada e intensa captou a sua visão periférica, desaparecendo tão rápido como apareceu. Baixou o olhar e fechou os olhos, antecipando o que viria a seguir. Um estrondo ruidoso ecoou no céu e fê-lo estremecer.

Eis a razão pela qual não se atrevia a mover-se. Um medo irracional que duvidava alguma vez conseguir explicar. Aquele som tenebroso que o paralisava e lhe enviava arrepios pela coluna abaixo. É verdade que desde pequeno nunca tivera uma afinidade particularmente grande com o que quer que se encontrasse no céu, mas, por muito que tentasse ignorar fenómenos naturais inevitáveis que descendiam do alto, a trovoada aterrorizava-o em níveis que não conseguia compreender. Em pequeno, podia dar-se ao luxo de ficar em casa em dias como estes, tentando afogar o medo nos lençóis e cobertores, sob os quais se sentia minimamente seguro; mas naquele momento estava preso dentro da escola, rodeado pelo seu pior pesadelo e sem ter onde se esconder.

Encostou-se à janela e fez um esforço para acalmar a respiração e parar de tremer. Respirou fundo. Conseguia escutar apenas o barulho das gotas de chuva a bater nas janelas e a música abafada saída dos phones que haviam caído no chão.

— Honestamente, és a pessoa que menos esperava encontrar aqui a esta hora.

O som de uma voz aguda sobressaltou-o. Ela deu alguns passos em frente, ficando a cerca de dois metros dele. Fitou-a em silêncio.

— Poderia dizer o mesmo de ti. Julguei que te tinha visto a sair pelo portão com o resto das pessoas.

— Voltei para trás para vir buscar uns livros. Mas não esperava encontrar ninguém aqui a esta hora — dirigiu-se para o seu lugar na sala e tirou cuidadosamente três livros de debaixo da mesa.

Caminhou até à porta e parou, olhando para olhos cor de avelã com expectativa.

— Não vou ficar para sempre à espera que te mexas, sabes?

— Vai indo. Daqui a pouco já desço.

— Vem agora comigo. Não tens ninguém à tua espera?

— Nem por isso. Vai lá, eu hei de ir embora, eventualmente.

Ela voltou-se, afastando uma madeixa ruiva da face. Lançou-lhe um olhar desconfiado e cruzou os braços.

— Porque é que não queres ir embora?

— Por nenhuma razão.

—Não te queres molhar? Se é esse o problema, eu tenho guarda-chuva.

— Já disse que não precisas de esperar por mim – continuou a responder secamente e evitou os olhos âmbar semicerrados.

— Qual é o teu problema?

— Já disse que não há nenhum.

Um estrondo. Um tremor involuntário. Um olhar de perceção.

Ela aproximou-se, tentando ler a expressão parcialmente ocultada por madeixas negras. Houve um momento de silêncio, seguido de um suspiro e de um murmúrio.

— Vai embora, eu fico bem.

— Não.

— Já deves ter percebido que não consigo sair daqui enquanto esta tempestade não parar.

— E se chover o resto da noite? Vais dormir aqui?

Ele encolheu os ombros, ainda sem fazer contacto visual. Ela hesitou uns segundos e encostou-se à janela à sua beira, ombros a milímetros de se tocarem. Surpreendido com a proximidade súbita, estava prestes a questionar a situação, quando ela começou a falar.

— Quando eu era pequena, tinha medo do escuro, então não queria dormir sozinha — começou. — Pedi à minha mãe para dormir no quarto dela ou no da minha irmã, mas ela não me deixou. Disse que tinha de ser eu a superar este medo e que o máximo que podia fazer era dormir com uma luz de presença. Lembro-me de ter feito uma birra e ter dito que não conseguia, mas não serviu de nada; e no entanto, não foi tão difícil como eu pensava. Sabes o que fiz?

—O quê?

— Fingi que no teto do meu quarto se encontravam todas as estrelas do Universo, e olhava para as constelações até adormecer. Via Deneb, Altair e Vega: o Triângulo de Verão. Via a Ursa Maior e a Ursa Menor. E perguntava-me se, depois de morrer, brilharia com aquela intensidade ao lado de todas aquelas estrelas.

Embora os considerasse pensamentos mórbidos para uma criança, ele percebeu a analogia e sorriu.

Outro trovão.

— Quem me dera ter essa força de vontade.

— Todos têm força de vontade. Basta quererem desencadeá-la.

— O que sugeres que faça, então?

Houve um momento de silêncio. Ele olhou para fora da janela, tentando ver se a chuva tinha acalmado, quando sentiu a sua mão a ser agarrada e foi puxado para fora da sala. Não se atreveu a dizer o que quer que fosse, tentando processar a situação. Quando se apercebeu do que estava a ocorrer, tinham descido as escadas e estavam a sair da escola de mãos dadas. Ele travou-a, assustado, mas ela limitou-se a apertar a mão dele com mais força.

— Gostas de música clássica?

— S-sim — gaguejou, hesitante .

— Então imagina o caminho daqui até a tua casa como uma sonata de Beethoven. A maior parte do caminho é um adagio, durante o qual apenas podes ouvir os teus passos, os carros a passar e a chuva a cair. No entanto, para a música não se tornar aborrecida e repetitiva, tem de haver um allegro ocasional — o trovão. Se pensares assim, o trovão não está na tempestade para estragar o ritmo, mas sim para dar vida à melodia.

Mais uma vez, silêncio. Ele baixou o olhar e respirou fundo. Olhou-a de relance para garantir que não estava sozinho e talvez para ver se ela inspirava alguma confiança que lhe faltava a si. Suspirou e ergueu a cabeça, com a metáfora em mente.

Seguiram assim sob a chuva, abrigados debaixo de um guarda-chuva branco. Já passavam cerca de duas horas e meia desde que as aulas haviam acabado. Em circunstâncias normais, ter-se-ia encaminhado para casa enquanto o céu ganhava uma cor avermelhada e, eventualmente, escurecia, o caminho ficando apenas iluminado pela luz ténue dos lampiões e das lojas e cafés que ainda estivessem abertos a essa hora. Mas nesse dia era diferente. Pois nesse dia sentiu que descobrira algo que nunca poderia ter descoberto em circunstâncias normais. “É uma melodia agradável”, pensou, ao afastar-se no passeio com a pessoa que lhe mostrara um modo diferente de ver algo que nunca pensaria ver positivamente.

Tatiana Morais, 9.ºC

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