A Descoberta de Librorbe

O assombro desmesurado que ainda sinto por Librorbe não me permitiu parar um segundo sequer, desde que aqui cheguei, para que pudesse relatar os fascínios desta ilha.

Como se tivesse sido acometido pela febre ou pela fadiga, tive de fazer algum esforço para abrir os meus olhos. Não sabia como havia ali parado. A última memória que tinha era a de estar a navegar pelo mar, debaixo de uma tempestade feroz, incontrolável e aterradora. A tontura tomou as rédeas do meu consciente e perdi o controlo dos meus sentidos. Senti o ar faltar e os pulmões a vacilarem. Esta náusea tremenda é a última lembrança que tenho antes de voltar a acordar.

Quando me ergui do chão, pude constatar que o espaço envolvente era formidável. Estupefacto, sem ideia de onde me situava, fosse no espaço ou no tempo, contemplei, imóvel, durante algum tempo, tudo o que me cercava. Esta foi a primeira vez que pude espreitar a ilha, que mais tarde vim a descobrir que se chama Librorbe.

Em busca de respostas e também intrigado, decidi percorrer as ruas. O meu corpo, debilitado no princípio, logo se recompôs. No entanto, nem tive tempo para meditar acerca do estado físico em que me encontrava, pois o cenário à minha volta era esplêndido. Simplesmente, falta-me linguagem para o descrever, ainda que me encontre já há uma semana aqui.

O que observei, numa complacência absoluta, foram situações que nunca havia especulado que pudessem existir. A abundância das árvores, a sua frescura, a maciez do ar e a brisa estival envolveram-me numa atmosfera sublime. Além disso, vi muitas mulheres e homens com os peitos nus. Aquelas criaturas tão livres de pudor e de semblante tão circunspecto faziam jus à sua nudez. Assumiam-na com tanta naturalidade que, à primeira vista, fiquei deslumbrado. As poucas roupas que usavam nada tinham de complexas ou de alta costura. Escolhiam vestir-se de uma forma simples.

Equilibrados e sensatos, os habitantes de Librorbe instigaram-me diversas reflexões no decorrer da última semana. Como são inauditos os seus costumes!

A pureza do ar logo se revelou revitalizante, quando o sol se mostrou no seu zénite. É claro, pensei, não é porque tudo isso pareça ser muito harmónico que não há também verões quentes. Algo de estrutural nesta sociedade é o balanço entre o frio e o calor, o alegre e o melancólico, o iluminado e o soturno. É difícil compreender a capacidade que os librorbianos têm de se conformarem com o lado negativo e também o vigor com que se resignam a aceitar as suas circunstâncias. São um povo extremamente grato. A fartura das suas produções não resulta em quilos de alumínio ou em rios de plástico. Geram uma maré de arte que alimenta não os mercados, mas sim as almas dos indivíduos justos.

Compreendi, então, o porquê da nudez tão reveladora entre os habitantes desta civilização. É algo trivial, puramente isso. Os homens não prendem os seus olhares um segundo a mais sequer aos bustos das mulheres. Os colos são apenas partes banais dos corpos, tal como as pernas.

Exaltado por aquelas tão inusitadas cenas e pelo calor de meio-dia que tardava a cessar, sentei-me numa das incontáveis praças da ilha. Recuperada a minha razão, muito embora ainda julgasse estar a viver um delírio, desfrutei duma sombra deliciosa. No maior coreto que já alguma vez avistara — se é que podia ser considerado um coreto, devido à sua grandeza imperial —, sentou-se em pequenos bancos, hermeticamente alinhados, um grupo de jovens músicos. Dada a elegância esguia com que se moviam, julguei que a sua confiança prometia uma bela melodia.

Naquele momento, pude começar a compreender a lógica daquele povo. A sonoridade que experimentei anunciou claramente o que de facto era o povo librorbiano. Nem os posso descrever. Escapam-me as palavras e, mesmo que as pudesse escrever, seriam ilegíveis àqueles que nunca estiveram em Librorbe.

Librorbe é isto, de facto. Uma ausência de todo e qualquer pressuposto que temos da sociedade e dos indivíduos. A fim de a compreender, é preciso libertar-se das amarras que são os nossos valores e inserirmo-nos cegamente no seu contexto.

E foi isso que fiz. Absorto no mundo dos librorbianos, aprendi sobre as suas passagens arborizadas, sobre as suas verdades e mitos, sobre a sua natureza exuberante, a sua alimentação vegetariana e a inexistência do plástico no seu quotidiano. Algo que me prendeu durante vários minutos foi a perceção de que não utilizavam automóveis diariamente. A única vez que os vi foi num dia chuvoso. Além dessa exceção, só testemunhei a maré de bicicletas, cada uma de colorações únicas, a compor o mosaico de transeuntes da cidade.

Ao fim do meu primeiro dia em Librorbe, senti uma pontada de fome a revolver-se no meu estômago. Um pouco indeciso, fiquei a questionar aonde repousaria a noite e aonde faria refeições.

Decidi procurar um restaurante. A fome não me permitiu vaguear por mais de dez minutos e logo me precipitei a entrar no primeiro estabelecimento se atravessou nos meus olhos. Entrei num prédio cujo pé-direito era assombroso. Sentei-me e aguardei que me atendesse algum dos seres místicos que eram os tais librorbianos.

Uma menina jovem de cabelos fulvos e escorridos dirigiu-se a mim e pronunciou palavras indecifráveis. Um pouco desconcertado, tentei demonstrar que não a entendida, gesticulando que não percebia sequer uma palavra do que dizia. A jovem ausentou-se do recinto por alguns instantes e retornou trazendo um objeto muito curioso, que fazia traduções do librorbiano para línguas latinas instantaneamente. Neste momento, ocorreu-me que, uma vez que os librorbianos conheciam as línguas latinas, talvez eu não tivesse sido o primeiro viajante a desbravar a ilha.

Enquanto degustei um prato que não fazia ideia do que poderia conter, divaguei acerca dos meus possíveis conterrâneos que também aqui vieram aportar. Quando terminei o jantar, percebi que eu não guardava uma mísera moeda nos bolsos. A empregada estranhou quando eu mencionei a palavra “dinheiro”. O tradutor logo pronunciou a seguinte frase que não pude apagar da mente: “Nós, librorbianos, não temos moeda. As nossas trocas de serviços não envolvem papéis ou metais, mas sim a confiança dos nossos camaradas. Eu confio em si, estranho. Sei que, quando precisar de algo que seja do seu ofício, recorrerei a si, usufruindo dos seus saberes, dos seus dotes e do seu tempo, assim como você beneficiou dos meus”. Após falhadas tentativas de lhe explicar que eu com nada lhe poderia retribuir, ela exclamou: “Então que ofereça os seus ouvidos, a sua compaixão.”

Por fim, a doce mulher apresentou-me a um senhor que habitava ao lado deste restaurante. O homem era um alemão gentil e sorridente, chamado Franz Menck. Este acolheu-me em sua residência e foi o meu guia durante a minha primeira semana aqui. Tornámo-nos rapidamente amigos e compartilhamos diversos pensamentos acerca daquela civilização tão maravilhosamente estruturada.

Até o presente momento, a maior admiração que tenho pelos librorbianos é a sua alta qualidade de compreensão. Ao constatarem a sua condição humana, frágil, imperfeita e efémera, visam a valorização das maiores virtudes, isto é, a arte, o amor, a compaixão e a sabedoria. São as criaturas mais sábias com quem algum dia contactei.

Assisti a vários espetáculos de teatro, de ópera, de dança e de música. A farta massa de artistas preenche as ruelas espaçosas, os jardins e todos os recantos da cidade. A atmosfera lírica do lugar contagia os habitantes.

No entanto, tanto são devotos às belezas transcendentais das artes quanto são fiéis à filosofia e às matemáticas. A educação desempenha um papel ainda mais fulcral do que qualquer religião. Aliás, são todos ateus e já encontraram a justificação para a não-existência de Deus há séculos.

Enquanto o resto do mundo se questiona sobre este assunto, os librorbianos já aceitaram a sua condição mortal e a pequenez perante a imensidão do universo. Por isso, o prazer, qualquer que seja ele, nunca é motivo de desprezo.

Algo que me toca, além disso, é a configuração política. Os políticos lembram-me aqueles sobre os quais lemos sobre em relatos sobre a Grécia Antiga. Ser ativo na política simboliza o saber, a cidadania e constitui uma das grandes virtudes da sociedade librorbiana.

Eu adoraria relatar mais sobre Librorbe, pois ainda tenho páginas e páginas a escorrer sobre as minhas vivências fabulosas nesta terra. Contudo, prometi que iria ajudar alguns dos alunos das línguas com o português. Preciso contribuir para a sociedade com os meus conhecimentos e, como sou redundante em qualquer outro ofício, parece-me que estarei fadado às lições de português!

Frederico,

13 de agosto.

 

Luiza Toniolo, 11.ºD

2 Comentários

  1. Sheila

    Narrativa rica e expressiva com grande produção e estrutura do pensamento, tocando no sentimento do leitor se dá uma sensação de estar presente na Ilha como o personagem.

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