Ai de mim, homem de pouca fé, murmura um velho ao pé da estátua do pobre general. Poderia ter sido um pensamento do nosso poeta, nosso salvo seja, que isso implicaria uma pequena carícia, um trocar de olhares, não que ele já não tenha deliciado os prazeres carnais, os caminhos de deus são insondáveis, fosse o contrário e há muito que o cargo estaria livre. Ricardo Reis, a quem o tempo não aplicou os seus efeitos, oportunidade adequada para o uso da metáfora da ampulheta, talvez quebrada pelo seu uso, regressou a casa. Algum familiar requisitou um pedido de transladação do seu caixão, estranho facto de os parentes se recordarem do médico, os únicos que o honram com os feitos da profissão, não que este acontecimento o perturbe, a viagem é agradável, não é a comodidade de uma primeira classe, tempos modernos, os próprios deuses já cumpriram demandas de maiores exigências. É noite quando chega, o tempo é tépido, mas poucos transeuntes percorrem os becos, atalhos e veredas, as hordas de turistas recolhem aos seus quartos, fatigados pela emoção da caminhada, pela dureza do granito, pouco sabem que representam a nova raça de habitantes, mais sofisticados, mais desenvolvidos, com bolsos mais largos, agora só falta afastar os antigos, referência pleonástica aos portuenses, espécie subdesenvolvida e em vias de extinção, assim seja cumprida a vontade do destino. Ricardo Reis, um exemplo de um vaivém português entre o nosso portal e o outro, ouve os seus companheiros de viagem a falar, espera pelo momento indicado para abrir o caixão, não pretende assustar os vivos, já chegou a conduta de Jesus, no entanto a espera pode ser longa, porque não passar pelas brasas, trocadilho pouco simpático para quem se encontra no purgatório, ou se encontrava, que agora com as diretrizes papais teve que ser encerrado, esperemos que não copie o exemplo das prisões portuguesas, talvez este seja o motivo da mudança de Ricardo Reis, talvez o purgatório possa assumir variadas formas, talvez ele nos possa responder, contudo, adormeceu, certificar-nos-emos de lhe perguntar quando acordar.
No romper da madrugada, a brisa da Ribeira passeia pelo recinto e Reis, a quem a memória não encontra o seu lugar, finalmente pode cumprir uma das suas filosofias, é pena não se poder lembrar, é confortado por este afago, estende-se pelo retângulo de madeira e, após uma breve discussão entre a preguiça e a vontade, mansamente a tampa é levantada e Ricardo Reis ergue a cabeça nua e olha, certifica-se que está sozinho. Sente o sol na face e por momentos detém-se a apreciar o calor. Ergue-se, sacode o pó do fato e repara que tem um livro na mão. Abre-o, uma mancha preta alastra-se pela sua vista, um fenómeno já conhecido, ainda tenta estudar os símbolos gatafunhados, É inútil, nem pra combustível serve, fecha-o e deixa-o. Não sabe para onde ir, mas sabe que tem que ir, portando, é feita a vontade, a quem, não se sabe. O poeta caminha pela Rua de Agramonte, vira na Rua Monsenhor Fonseca Soares, repara nos espaços em obras, sujos, silenciosos, segue em direção à António Cardoso e desce-a. Depara-se com as grades vermelhas do Jardim Botânico. Ricardo Reis aproxima-se e fica a observar o palacete. Por ele passa um autocarro repleto de mulheres-a-dias, é bom saber que a ordem social ainda se mantém nos transportes. Assim está, até que um choro eclode pelo ar. Não sabe de onde vem. Olha para a direita, olha para a esquerda, mas não encontra o responsável. Incomoda-o. Anda alguns metros, muda de passeio para uma melhor perspetiva, tentativas ineficazes na resolução do problema. O choro, que já não é choro, aumenta a sua intensidade, dirige-se a Ricardo, Se eu ficar quieto, ele vem ter comigo. Prepara-se para agir conforme o pensamento, todo o seu corpo segue os procedimentos necessários para o impacto vindouro. Apesar disso, silêncio. Não há sinal da fera, é o momento perfeito para sair da arena. Reis afasta-se, segue o caminho de onde vem, e sem nenhum aviso, o animal feroz salta da esquina onde se escondia. É acompanhado pelo seu velho domador, homem baixo, de tez morena, com cabelos brancos e a cara rapada. Reis utiliza um pinheiro como abrigo. Ufa, não reparam nele. Fica a observar o desenvolvimento da cena. O barulho de um ramo a ser partido faz com que o velho se volte para trás. Interseta Reis e os dois ficam imóveis. Reis poderia ser um espelho do velho e o velho poderia ser um espelho de Reis. A idade não afeta as semelhanças. E tal como o barulho do ramo despoletou uma reação, agora também vai ser visível uma relação entre causa e efeito. Reis afasta-se do seu esconderijo, retorna ao caminho que o conduziu ao jardim, enquanto caminha ajeita a gravata, todo este movimento acompanhado pela sua morosidade, há que esperar a sentença divina, e pela perplexidade do velho, velho só de aparência, que pela forma como corre ninguém adivinharia que oitenta e um invernos já passaram pela sua alma. Reis dobra a esquina e continua o seu passeio, o velho que agora cavalga com a brisa, dobra a esquina e nada. Na realidade, foi a esquina que o dobrou. Reis desapareceu.
Guilherme Santos, 12.ºC