Ao longo de vários dias fui para o deserto com esta obra, procurei um confronto com ela, na medida em que deixei que ela me levasse para a colina mais alta do deserto, que facilmente seria esbatida por mais uma tempestade de areia. Novamente estaria no posto mais fundo do deserto, à espera de uma escada que me permitisse subir. Uma escada que eu sozinho não conseguiria construir, nem com as minhas mãos, nem com as minhas palavras. Esperei no fundo do deserto por algo que me ajudasse a ascender.
Talvez seja esta coisa o objeto estético, algo que nos resgata do alheamento, com uma atração gravítica de não permitir que sejamos somente atraídos pela Terra. O curador da exposição afirma: [Rui Chafes] Propõe uma segunda forma de acesso à realidade: um caminho de recusa da gravidade natural, sendo a primeira forma a sujeição absoluta à gravidade física. Ou seja, a arte como que nos agarra à distância, eleva-nos, pois, ao contrário da gravidade natural, agarra-nos pelo âmago e não pela nossa obesidade, não pela nossa ornamentação, mas por aquilo sobre o qual a ornamentação se edifica, sobre a nossa verdadeira matéria, no sentido de ser a matéria do potencial acesso à verdade e não no sentido em que se vê. Porque temos muito essa tendência de achar que a verdade é aquilo que se observa, mas os sentidos facilmente se enganam. Mas creio que devemos olhar (e aí o objeto estético é de suma importância), porque quer real quer irreal, o que vemos é fruto de nós e por isso nos permite o conhecimento de nós mesmos. É fruto de nós, porque não é a visão da forma do objeto que vemos, mas aquilo em que a mente o transfigura: é um reflexo do nosso olhar.
Os estudiosos de literatura gostam muito de encontrar intemporalidades nas várias obras que estudam. Mas será que uma certa homogeneidade nos conteúdos literários e no comportamento humano não são apenas um olhar homogéneo e não uma humanidade homogénea? Porque se não temos a certeza da existência da humanidade e talvez tenhamos mais alguma acerca da nossa mente, não deveríamos atribuir às homogeneidades ao olhar subjetivo e não ao objeto olhado? Os filósofos questionam-se acerca da existência, mas parece ser a mente o mínimo para essas interrogações. E talvez a humanidade e o seu comportamento seja uma invenção minha e por isso lhe tenho atribuído o protagonismo quando observo a intemporalidade de uma obra de literatura, porque pode acontecer eu mais dificilmente aceder àquilo que determina a maneira como penso, à minha mente, e talvez prefira explicar as coisas dizendo aquilo que vejo e não ir de encontro à forma como olho.
A Ascensão de Chafes é para mim uma analogia da arte e do encontro com a transcendência, na escada suspensa. Quando olho a escada penso numa subida imaterial. A escada não toca a realidade, o chão e o teto, não traz qualquer indício de limite, mas apenas de distância incomensurável, como se o espaço entre o chão e o teto fosse infinito e não se visse o chão nem o teto e isto implica a tal arte de abstração que referi no capítulo primeiro. A escada lembra que, em certo momento inesperado, uma espécie de grito rasgará esses alicerces da nossa inércia da sujeição à gravidade natural e nos levantará, tal como S. Cristóvão transporta Cristo. Então igualmente a arte transporta, é o objeto que me tira do abismo do deserto (com o qual inicio a reflexão) objeto que não sou capaz de criar sozinho: não sou capaz de me conhecer inteiramente sozinho, preciso da escada que não tem que estar segura, isto é, não tem que significar uma só coisa. A escada significa aquilo que a minha forma de sentir disser. O objeto não é imutável e essa ideia parece ser presente nas várias instalações da igreja.
Nas fitas de metal negro suspensas e retorcidas vê-se a necessidade de mudança. Há a consciência de que precisamos de mudar e de nos transfigurarmos, como as fitas em metamorfose. E relacionando com um ambiente sacro, algo que irei desenvolver mais à frente, esta ideia de passagem associada à mudança tem muito sentido para mim. Vejo há algum tempo o Cristianismo também como proposta para me preocupar em melhorar, algo que me relembra que tenho necessidade de ser curado e aquilo que me cura é deixar certas partes de mim morrer, e experiencio uma espécie de ressurreição. Todavia, para poder viver essa passagem, devo conhecer-me.
E parece-me que é por isso que tanta gente ao longo da história se fez peregrino. O peregrino é aquele que se sente estrangeiro. Estrangeiro é qualquer um que não pertence ao lugar onde se encontra. O peregrino é alguém que sente não pertencer ao lugar onde se encontra e esse sentimento fá-lo procurar, o que de si exige a mais profunda devoção a compreender-se e ao que o rodeia. Esse sentimento advém do entorpecimento da perceção da passagem do tempo, cuja origem é a rotina. E a mudança exige essa perceção, que pode ser obtida na arte, quando se pensa desconsiderando o tempo, porque nos obriga a questionar. E as fitas significam o sujeito estético ou o crente em transformação. São então o espelho perfeito: mostram quem sou, realmente mostrando o que em mim está a acontecer, ou seja, mostram a mudança, mudando-me. Chego à mesma conclusão de há pouco: a Ascensão é analogia de arte.
As impressões da erosão na escada de mão, feitas a partir da moldagem das escadas para o coro alto, dão-me uma certa esperança acerca da existência da verdade, isto é, dizem-me que é mesmo possível ascender. Tal como se contraria a gravidade natural, o peso do corpo, também é ou será possível fazê-lo por completo, quando o peso do corpo deixar de existir. Talvez a vida seja uma espécie de êxodo, de peregrinação, em que nos vamos libertando da gravidade. Se nos libertamos do corpo não sei.
E imagino os degraus superiores e inferiores com marcas mais ténues e os intermédios os mais erodidos. De certa maneira a criança acaba de sair da terra e o idoso vai ao seu encontro. O adulto está perdido. Está olhando para todos os lados e para nenhum, e grava a sua marca no chão. A criança olha para as coisas como sendo desconhecidas e o idoso está na sua demência e é-lhe retirada a sentença por incapacidade.
Espanta-me também a materialidade desta (não sei se posso chamar) escultura. O ferro e a moldagem, dois aspetos tão intemporais. O ferro pela sua utilização desde a Antiguidade e a moldagem nos processos de formação dos fósseis. E os fósseis são testemunhos da vida na Terra. E a erosão dos degraus é-o também, sobretudo quando expressão de atritos e de gravidade natural.
A obra atrai-me, cria uma gravidade que me solta do chão, na medida em que me obriga a abstrair-me. Aquilo que sinto é necessidade de subir a escada, na esperança de que aquilo que vejo cá de baixo, que é uma escada que não leva a lugar algum, seja falso e que afinal haja uma outra via na ponta da escada. Em vez de isto ser feito com uma pintura de figuras celestiais, é feito com um objeto usual.
Francisco Silva, 10.ºB