Procuro sempre as frases dos outros para justificar as minhas posições. Parece que oferecem uma proteção das críticas dos outros, apenas porque já houve outra pessoa a pensar o mesmo que eu. Acaba por ser uma atitude insegura. Talvez cobarde. O eco das palavras de quem já fez algo no mundo é o meu escudo. O meu e o de outros tantos como eu. Porque hoje temos medo. Medo do politicamente correto, medo que nos julguem, medo que nos ostracizem, que nos tirem o que é nosso. Tenho medo que me coloquem à parte desta sociedade profundamente disfuncional. É um pouco paradoxal, mas quem não tem medo de ser sozinho?
Abdicamos do que nos faz ser quem somos pela mera necessidade evolutiva de viver no seio da comunidade. Vamos à igreja mas não questionamos. Engolimos o que nos ensinaram na catequese como se tudo tivesse sido assim no princípio, agora e sempre. E os que não acreditam em nada também não questionam. Têm apenas medo de se desiludirem um dia. Por isso escondem-se atrás da ciência. Dizem que não pode existir Deus se o mal existir. Queriam viver num mundo onde nada faltasse, onde a vida fosse sempre fácil. Os homens não se fazem nos momentos fáceis da vida. Crescem nas dificuldades. Nos erros. Nas falhas. Caso contrário, seríamos o quê? Deuses? Qual seria a vontade de viver se não houvesse a possibilidade de melhorar o mundo? É para isso que, no fundo, aqui estamos. Não para sermos apenas mais um.
Do outro lado da barricada temos aqueles que acreditam em tudo. Os que acham que um Deus qualquer nos coloca debaixo de provações de fogo para testar a nossa fé. Acreditam, portanto, que não são mais que fantoches. São pessoas que nasceram com cérebro por mero engano. Bastava terem uma Bíblia dentro da cabeça e estavam prontos para a pregar ao Mundo. Leem cada palavra, como se nela residisse toda a razão da sua insignificante existência. São servos de algo que, na verdade, desconhecem. Desconhecem porque não acreditam no que sentem. No que percebem sozinhos. Obedecem cegamente a algo que decoraram, que nem tentaram descodificar. São o que lhes foi dito para serem. Defendem uma lista de valores sem sentido. Coisas que nem foram ditas pelo Deus em que dizem acreditar. Meros apontamentos dos homens que se aproveitaram disso para controlar um rebanho pela religião.
Dito isto, não digo que não acredito em nada. Tenho que acreditar que sou mais do que um corpo que, um dia, não será mais do que poeira das estrelas. No fundo é isso que somos. Restos do universo. Temos medo da morte porque não queremos acreditar num vazio eterno. Não queremos acreditar que todos aqueles que foram importantes para nós desaparecem assim. Para sempre. Nunca mais os podemos olhar nos olhos, falar com eles. Sentir o som da sua voz, o calor das palavras. Ou a companhia do silêncio. Mas acho que o que faz mais falta é o olhar. O brilho dos olhos. O olhar diz o que se passa verdadeiramente em nós. É algo no nosso corpo que não modificamos verdadeiramente. Que não conseguimos controlar. As palavras podem soar falsas, as ações podem ser hipócritas, mas o olhar é sempre sincero. É capaz de nos trair, para o bem ou para o mal. É nisso que tenho fé. Que somos mais do que parecemos. Pelo menos sentimos que o somos. Que não desaparecemos assim. Que vivemos um pouco nos que nos conheceram. Nos que gostavam de nós. Um pouco de nós vive com eles.
Obviamente, nem todos os dias são bons. Há dias em que as coisas correm mal. Aqueles dias em que não sentimos nada. Parece que a alma se escondeu algures, longe do que nos incomoda. Ficamos ali, vazios. Abandonados. Sem capacidade de reagir. Sem capacidade de saber o que verdadeiramente sentimos. A confusão é demasiado grande para aceitar a vida. Nesses períodos não vivemos. Limitamo-nos a existir. Quem realmente somos desaparece. Às vezes é isso que todos queremos fazer. Fugir. Desistir para sempre do jogo e ter fé que, do outro lado, se existir alguma coisa, não é pior que isto. É por isso que a felicidade é relativa. Nós só sabemos que a tínhamos quando desaparece. Podemos pensar que somos felizes mas não acreditamos mesmo nisso. Concentramo-nos no trabalho, ou noutra coisa insignificante. Só olhando para trás, em comparação, é que percebemos verdadeiramente o valor do que tínhamos. Isto faz-me lembrar o poema encontrado na parede de um dos quartos de crianças de Auschwitz:
Amanhã eu fico triste…
Amanhã!
Hoje não.
Hoje eu fico alegre!
E todos os dias,
Por mais amargos
Que sejam,
Eu digo:
Amanhã eu fico triste,
Hoje não!
(Autor Desconhecido)
Custa a imaginar uma criança ali. Nunca lá fui. Posso apenas imaginar o silêncio. O ar, manchado pelo horror do que lá foi feito. O mesmo ar que já foi respirado por assassinos e vítimas. Todos fizeram parte de um império do ódio humano. Mas este miúdo, vivo ou morto, fez mais do que muitos julgavam possível. A inocência das crianças faz com que elas sejam sinceras. Mesmo que as subjuguemos, elas verão a felicidade nas pequenas coisas da vida. Porque faz parte da sua Natureza acreditar nos sonhos. Viver numa ilusão que, talvez, seja a verdadeira realidade. Nós vemos o branco, eles vêm o arco-íris. Talvez sejam eles a ter razão. Perante isto como podemos acreditar na conceção de Deus que nos tentam vender? E como podemos não acreditar em nada? Andamos todos cegos. As crianças é que acreditam na verdade. Dizem o que lhes vai na cabeça. No coração. Não querem saber do politicamente correto, nem dos castigos, nem da vergonha aos olhos da sociedade. São felizes como são.
Crescer não é tão bom como nos parecia. Tenho saudade de não ter preocupações para além dos cromos da caderneta. Agora vivemos para os livros, decoramos o que lá vem e ficamos automatizados para isso. Tenho saudades de ser pequeno. De me pegarem ao colo, de andar às cavalitas, dos abraços nos joelhos do meu pai ou dos beijos da minha mãe. De ir para a escola ter com os meus amigos. Jogar futebol todos os intervalos sem me preocupar com os joelhos esfolados ou com as reprimendas dos pais. Saudades de ser ingénuo e desconfiado, tudo ao mesmo tempo. Ai, as saudades das brincadeiras… Ninguém era excluído. Ninguém era julgado pela marca dos sapatos. Podemos voltar ao início? Ao tempo em que eramos felizes? Ao tempo em que tínhamos todos de quem gostávamos ao nosso lado? A morte não era mais que uma história assustadora e distante, daquelas que só aparecem nos livros. Quando olhavam para nós com aquele brilho nos olhos que só se tem por quem nos é querido… Eramos felizes sem o sabermos. Tristezas só para amanhã, quando crescêssemos. Prometo a mim próprio que não deixarei essa parte de mim desaparecer. Guardo a honestidade de uma criança. Guardo o sorriso, na altura desdentado, da infância. E guardo também as cicatrizes dessas aventuras, memórias que nunca se vão apagar.
Francisco Caetano, 11.ºA