Do Amor e do Navio sem Leme

John Wlliam Waterhouse, “The Awakening of Adonis” (c. 1900)

Nietzsche criou um Espírito da Gravidade que se aloja nas costas de um indivíduo como um parasita, pesando-lhe todos os movimentos: fá-lo sentir-se cansado da vida e a querer virar-se para a morte, tornando-se um dito Pregador da Morte, santificando-a como um Deus morto. E qual o porquê desse cansaço tão opressor e tão estéril? Acontece, pois, que o ser humano carrega um conjunto de valores que lhe são estranhos e que são tidos como o retrato da virtude por parte do resto do mundo. Todos esses valores, virtuosos, alimentam-se da alma, sob a pretensão de terem conhecimento daquilo que se chama o Bem e o Mal. Os seres que neles acreditam cultivam-nos, desperdiçando a sua vida nos adros das igrejas a realizar ideais impostos, fugindo da vida e de todas as suas dimensões, nomeadamente, da amorosa. Ninguém ama, porque tem medo de perder a virtude, como se as palavras purificadoras do amor fossem um dano, como se uma simples manifestação de afeto não merecesse ser vivida legitimamente.

Apesar de os conflitos de interesses serem diferentes, hoje, a virtude antiga está, aparentemente, a definhar-se. Porém, ela está continuamente à espreita para condenar ao inferno o pecador que escreveu uma carta de amor, para condenar ao inferno a mulher que beijou um homem em praça pública. A virtude, ao contrário do inferno, poderá existir sob diversas formas, como a dos pais que temem pela reputação dos filhos, chorando a vergonha que o amor dos mesmos por outrem possa causar. Receiam o choque e a excomunhão por parte de seres curiosos e maledicentes. No fundo, apenas querem evitar o sofrimento e orientar os filhos no caminho da razão, desconfiados das intenções impuras do correspondente amante, estranho à família. Por vezes, a paixão é tão ardente que torna o amor proibido, que rompe todas as normas e as virtudes, matando o Espírito da Gravidade de Nietzsche, que ameaça o Super Humano.

Efetivamente, tal como pode ser novo o Super Humano, também o amor cria novidades. Veja-se o caso de Teresa de Albuquerque e de Simão Botelho, que se amam por escrito contra a vontade dos pais. Desobediência era coisa ainda mais intolerável na época, valendo muito a mão de ferro de Tadeu Albuquerque, aquando do tirânico castigo de fechar Teresa num convento. Mas Teresa não é cobarde e não desiste de Simão. Quantos de nós, presos ao mundo pelas nossas amarras, renunciariam à paz e ao conforto do lar familiar, em prol do sacrifício por alguém diferente ? Não vejo maior altruísmo do que este. Assim, Camilo Castelo Branco, em Amor de Perdição, mostra a verdadeira essência do amor: não somente enquanto prazer físico, como estamos habituados, mas enquanto uma batalha na qual lutamos sozinhos, só com a nossa alma e pena, escrevendo dentro da nossa prisão. Também Teresa terá sido presa, sendo o seu cárcere aquele que considero o mais sufocante: está enclausurada pelo tirano Tadeu e ameaçada pela desagradável presença do primo Baltasar, associado ao tio a partir do egoísmo e poder que quer exercer sobre ela. Contudo, Teresa consegue ser a tudo isto superior, sem desespero psicótico ou lágrimas escaldantes. Não. Ela aceita o que lhe impuseram sem revolta, por ser essa a situação por que passa por causa de Simão, o homem que ama. Ou seja, mesmo fechada num quarto, Teresa cria algo novo, até impensável: a liberdade, que encontra no amor por Simão. Apesar de dominada pelo pai, pelas freiras que a não deixam escrever e pelo primo, situação sem escolha possível ou saída, consegue, ainda assim, escolher, nem que para isso tenha de arriscar navegar por mares nunca antes navegados, como é o caso do mar misterioso do amor. Esse mar tempestuoso donde nada garante que dele se saia vivo. Nada nos garante que aquilo que fazemos está certo, o que é assustador, porque nos obriga a sair do nosso estado passivo: obriga-nos a escolher, logo, a viver, caminhando pelos nossos próprios pés. Mesmo morta, no final da narrativa, Teresa viveu mais do que quem tem medo do mar: sozinha lutou contra a realidade que se lhe opunha, trazendo tudo menos paz.

Sim, só ama quem está disposto a perder-se no meio das águas, sem leme nem terra firme por perto. Só os corajosos podem amar, embora no mundo não haja um consenso sobre aquilo que é o amor, nem sobre se devemos ou não amar. Camilo Castelo Branco ensina que devemos, através da inflexível Teresa (em relação a Simão). Não há muitas pessoas que encontrem respostas, colocando apenas problemas que acabam por não se resolver, mas tal não é o caso de Camilo: amamos e é tudo. Devo agradecer-lhe por as suas histórias serem a fundamentação de que o amor está vivo, dado que, nos dias que correm, olho para o lado e ouço somente os mexericos da festa da noite passada – a que chamam amor –, com a inimiga virtude alheia observando, despercebida passando aos olhos dos presentes na Casa do Amor, uma casa onde as mais puras narrativas românticas figuram independentes. Então, sou encorajada a pensar que estas se podem tornar realidade se agirmos como Simão Botelho e Teresa Albuquerque.

Deitem pétalas de rosa no local onde ambos morreram.

 

Fim.

Margarida Pereira,  11.ºA

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *