Fortuna

A vista de Fortuna que se estendia ante mim tomava-me o ar e fazia resfriar o meu corpo que, de tão assoberbado, se contorcia em arrepios mudos. A nudez crua dos prédios limpos arranhava o céu escarlate bruscamente, refletindo, num cinza apático e sério, a intensidade do raiar dos três sóis, que, como vigilante atento, asseguravam a tranquilidade dentro da cidade. Por entre imponentes construções, firmes na sua pequenez, estendiam-se espaços verdes que, expelindo frescura e fazendo relaxar a vista e o olhar eternamente abismado de quem julga, NÃO, de quem tem a certeza de ter encontrado, por fim, o paraíso.

Como criança desesperada, desci a enorme escadaria numa pressa imprudente e asfixiada. Pude sentir, finalmente, o calor escaldante do alcatrão rugoso sob meus pés descalços. Não contava, pois, encontrar o que vi diante de mim. Filas de carros flutuavam, levemente, seguindo organizada procissão sem destino aparente. Pessoas passavam por mim numa solidão estranhamente alegre e confiante. A cada esquina, deparava-me com homens fardados de um negro corrosivo e abrasador que, carregando pequenas armas a tiracolo, asseguravam o bizarro funcionamento do dia-a-dia dos fortunenses.

A circulação fluída marcada pelo passo frenético da população atarefada conferia um ar empenhado ao andar dos fortunenses. Os pássaros, numa melodia harmoniosa, uniam os céus e alegravam a terra. Crianças miravam-me como se de um inesperado, mas interessante, intruso me tratasse na sua inocência graciosa. O seu olhar sorria deliciosamente numa união carinhosa e contagiante.

A vida parecia, agora, valer a pena. A organizada desorganização que se apresentava atrevidamente apoderara-se da minha atenção quando, de súbito, tudo parou. A dois pequenos passos, imponente e violenta, erguia-se uma casa. O branco gelado que a revestia contrastava com o cinzento incolor reinante no espaço envolvente. As janelas baças, silenciosas e misteriosas, pareciam encobrir a atividade que decorria no interior. Os tais homens de negro aglomeravam-se à entrada: algo se passava.

O sol descia já, tocando os verdes montes e perfurando-os delicadamente, dando lugar à escuridão irrequieta de uma noite de verão em Fortuna. O branco outrora berrante tomava uma palidez ensurdecedora. Decidi, passado alguns minutos, aproximar-me e tentar obter informações que saciassem a minha interminável curiosidade. Descobri, pelas palavras informadas de um dos tais guardas, que se reuniam os chefes do país no interior. Sim! Os chefes! Isto porque cada província, como Fortuna, tinha o seu líder, eleito de dentro da população residente para um mandato anual. O voto era não um direito, mas um privilégio. Como pode uma sociedade não apreciar a sua autonomia? Os chefes estariam, naquele momento, a debater o futuro conjunto do país, abordando a sensibilidade de temas como a política fiscal e ambiental com uma tranquilidade apenas explicável pela sua intelectualidade imensurável. Aprendi, em poucos minutos, que os fortunenses, e os habitantes de qualquer outra província, não pagavam qualquer tipo de imposto, circulavam em liberdade e eram, como havia corretamente apreendido, vigiados por homens como o que discursava agora perante mim.

Preparava-me para submeter a minha voz trémula à imposição de novas questões quando, repentinamente, se iniciou uma movimentação para o exterior da casa. A proteção dada aos líderes era de tamanha imponência que achei por bem regressar a casa para um merecido descanso. O meu corpo entrou num transe profundo assim que sentiu o toque do lençol doce e azulado estendido sobre a descontração de um colchão que faz os medos desvanecer na negridão de uma noite sem fim.

Alegria, alívio, curiosidade. Todos me dominavam naquela manhã mal abri os olhos. A vontade ansiosa de sair e saber mais sobre a cidade em que me encontrava apressava os meus movimentos habitualmente regidos pela sonolência de um sono leve e intermitente, caraterística de uma vida monótona e só. Mas o lençol que havia deixado para trás já não era do azul doce que me cobrira quando adormeci. E os prédios já não me enclausuravam na minha pequena casa. Fortuna desaparecera, bem como as minhas ingénuas esperanças de fugir à solidão.

Fortuna não era real. Nunca havia nela vivido e, no entanto, aquele dia parecera-me realmente autêntico. Mas o que vira não era fruto da mera imaginação fértil e aguçada e de um adolescente infeliz como eu. Fortuna era um aviso, um pedido de socorro, um último alarme colocado no telemóvel numa manhã de escola. A ideia de utopia, de mundo e de futuro perfeitos, pode ficar comprometida pela ociosidade de uma sociedade apagada e inculta. Como o próprio nome indica, Fortuna pode derivar da sorte. Não dependamos nós da sorte para sobreviver. Lutemos nós pela simples esperança de poder entregar um mundo concertado aos nossos filhos. Deixemos o termo utopia viver nas nossas mentes. Façamos mudanças e reescrevamos o nosso próprio Destino.

Francisco Neto, 11.ºC

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