O reino que morava no meu ventre, o reino que ardia no meu ventre, o reino que protege a minha horda, os meus cordeiros. Onde as casas são de xisto e o rio não nos engole. E esse rio que divide ao meio a terra apenas chega a um metro de profundidade. As crianças brincam e é verão o ano todo.
O povo caminha despido, sobre dois sapatos.
Nas casas de xisto não se consome carne, nem peixe, nem ovos, nem leite, nem mel e nem lã. Não comemos os filhos dos outros, assim como não comemos as nossas mulheres e as mulheres das ovelhas. O sangue e as tripas permanecem junto dos ossos, assim como os homens permanecem junto dos animais.
Em vez do plástico, o algodão, o pano e o vidro. Não existe o tempo. Apenas se sabe quando é dia e quando é noite pela aparência das estrelas. Não existe a fecundação, somos como as bactérias: reproduzimo-nos através de um processo chamado “fissão binária”, no qual uma célula se divide em duas células filhas geneticamente idênticas. E não existindo a fecundação, todos os males que dela derivam são anulados. Não se maltratam as nossas mulheres.
Não existe Deus, o Páramo e o Tártaro.
O comércio do meu povo é de trocas. Cada um labuta para ancorar a sua casa, sendo a produção do algodão e do vidro religiosa, todos fazendo parte. E a educação é universal, ninguém fica para trás. As aulas são ao ar livre, sempre. Quem erra permanece na sua residência, numa espécie de prisão domiciliar.
É um reino pequeno, onde os pés dos meninos não sangram e o meu ventre não sangra. Gosto de visitar a casa da Aurora, que habita nua aqui, de forma a fugir do outro povo de homens e orcas. Em Ma’arri 269, os homens e as mulheres e os porcos e as ovelhas são bons. O vinho amargo e escuro é repartido por todos. Há açúcar e pão para cada montesino, pois ninguém se excede.
Calcei a metáfora das bactérias há pouco. Contudo, em Ma’arri 269 não marcham os ácaros pelos lençóis finos dos homens e nunca escutei um pranto à Tuberculose, à Difteria, à Coqueluche ou à Sífilis. Não se contraem doenças, pois não se ingere plástico, apenas o que a terra que suja os nossos joelhos nos concede todos os dias.
Gosto do meu pequeno povo, pequeno grande, grande pequeno reino onde os homens e os animais são apenas passageiros da terra que os desenhou. Comemos todos do mesmo prato e o Sol é permanente, um quente bom que clareia os fios de cabelo compridos das éguas e dos cavalos. Porque seria Ma’arri o lugar certo para se nascer? Porque o significado da vida é ser areia, rocha; depois, castelo na praia mais bonita; mais tarde, casa para os caranguejos que dançam na superfície e, por fim, pó. Porque na escola a Aurora nunca foi menos acabada por não gostar de Astronomia e preferir a Filosofia. Porque os homens não querem poder, dinheiro ou um império com o seu epíteto, apenas amoras e morangos suficientes para alimentar os seus bebés e as suas avós. Porque o inverno não congela os dedos dos pintores. E porque somos um só.
Odes aos cordeiros, odes às mulheres, musas da poesia que voa.
Inês Fonseca, 11.ºD