Por aquela altura ainda tinha medo. Nos dias insípidos de inverno, escondia-me do mundo, trancava-me nos meus pensamentos e esquecia-me de quem era. Pensava que assim tudo se resolveria. Não é verdade que o tempo cura tudo? Não, respondo. “Talvez se ignorar esta angústia, ela desaparece”, pensava eu. Pensamento tão absurdo e incongruente, que tinha o poder de prender o corpo ao chão, impedindo a sua evolução.
No entanto, a culpa não era do corpo que não se levantava, nem da alma que, magoada, perfurada e de ferida aberta, não sarava. Era só falha daquele pensamento, que cegava a lógica de viver. Realmente, para viver enclausurada em dor e em prisão interior, mais valia acabar por ali. Ainda assim, nas profundezas mais inóspitas da nuvem negra que me iludia, persistia uma réstia de coragem que me mantinha agarrada por um fio à vontade de viver. Essa coisa misteriosa, que, pela sua forma implacável de atuar, leva quem quiser, como e onde entender, sem aviso prévio, fascina, desde sempre, os inscientes pela sua frieza desumana, impiedosa e incontrolável, e deixa marcas bem fundas. Esse final comum a todos os mortais era o meu temor mais obsessivo, fazendo-me ter pavor à vida, porque podia nascer e acabar no mesmo dia. Só depende do destino traçado. Essa insegurança é o maior mistério e a maior certeza da humanidade. A grande verdade, porém, é que a cola que me mantinha aqui era feita de medo na sua essência, medo do desconhecido, do que está para lá do que se vê, do que pode ser o paraíso utópico com que temos sonhado, esse descanso eterno de que muitos falam. Ou pode tudo apenas ser uma ilusão e vivemos enganados para esquecermos, caímos no abandono, num buraco tão negro quanto a minha dor e entramos no ciclo da ignorância. Só depende do ponto de vista.
A noite caía. Acordei abruptamente da minha viagem pelo inconsciente, ao ouvir um estrondo na rua ao lado, seguido de um grito agudo e perturbador. Quase guiada pelo instinto, corri para a janela e, de uma forma involuntária e inexplicável, atravessei-a, correndo atrás do brado familiar. A estrada estava deserta, e só um carro jazia lá, vago e colocado ao acaso, mas de uma forma estranhamente propositada. Esqueci-me de tudo que me rodeava, focando-me apenas na imagem que refletia os vidros. Curiosamente, ao invés da minha pessoa, olhava uma criança, indefesa, confusa, admirando-me como um velho amigo.
“Não tenhas medo”, disse-me. “Eu sei o que isso é, mas não passa de uma possibilidade entre infinitas outras. Liberta-te desse universo que criaste, expulsa-o de ti e luta contigo mesma, ou então mais ninguém o fará. Lembra-te de quem és e, acima de tudo, distingue a tua ilusão da tua realidade”.
E desapareceu, deixando-me comigo própria. Aquela criança inquietante parecia-me habitual. Entretanto, sem razão aparente, a rua encheu-se do seu ambiente invernal, deixando as luzes mais brilhantes que nunca, e a noite encantadora.
Só mais tarde percebi, essa criança era eu.
Marta Magalhães, 9.ºC