Chovia ferozmente. Os pingos d’água rugiam numa intensidade descontrolada. Ouviam-se as árvores a revolverem-se violentamente, as ramagens a espreitarem a água que tombava dos céus e um nebuloso sonido de trovoadas.
Precipitou-se, alarmada com os raios que agora incidiam sobre a terra, bateu gentilmente à porta duma residência na Rua de S. Francisco. Um criado atencioso (louvada seja a santa obediência!) ofereceu-lhe abrigo e, além disso, almendrados, éclairs au chocolat, biscoitos húngaros e outros elegantíssimos doces. A Madame recusou-os educadamente. O criado, quase suplicando para se fazer útil, insistiu que a senhora aceitasse pelo menos uma modesta chávena de chá inglês.
Madame LaRoche bebia sossegadamente o chá, em sucintos sorvos, quando, de súbito, o anfitrião da casa rompeu na sala de visitas.
Cordial e terno, numa medida suficientemente respeitável, o dono da morada, Senhor Cruges, apresentou-se à Madame, que de imediato lhe devolveu a cortesia.
– É um imenso prazer conhecer Vossa Excelência. Espero que aceite as minhas sinceras desculpas por ter suplicado por abrigo à porta da sua casa. Estava eu voltando à minha residência, após uma promenade pelo parque, quando, infortunamente, a chuva desatou a escorrer de forma apavorante – escusou-se a Senhora.
– Ora, mas é muitíssimo graciosa a sua visita, senhora LaRoche. Ainda não tínhamos sido apresentados formalmente. Logo, esta é uma bela oportunidade para tal – disse Cruges, confiantemente.
Após uma breve pausa, retomou:
– Uma estimável Madame como a Vossa Excelência merece toda e qualquer sorte de gentilezas. Permaneça aqui pelo tempo que lhe for necessário. E, depois que esta trovoada terrível cessar, deixe que o meu criado a conduza pessoalmente a casa.
Madame LaRoche tentou declinar as gentilezas excessivas do maestro em vão. Conformada, sorriu placidamente ao polido desconhecido.
Sem tardar, o ávido pianista demonstrou os seus atributos musicais à mulher.
Do piano emanava uma tenra e harmónica valsa, a qual alegrava e enlevava docilmente a senhora LaRoche, já envolvida no esplendor daquela profunda melodia.
– Foi Chopin o compositor desta obra, não foi?
– Corretíssimo! Valsa Op. 64 n. 2. A senhora não imagina o quanto é fascinante saber que há quem frua de cultura neste país! – exclamou Cruges, extasiado.
– Ó Vossa Excelência… Afirmar que tenho grande conhecimento cultural seria muito presunçoso… – corou a senhora LaRoche, inibida.
– Deixe-se disso, Vossa Excelência… Já é um tremendo avanço que me não supliquem para a deixar de tocar… – afirmou Cruges, desanimadamente.
E assim quedaram Madame LaRoche e Monsenhor Cruges a contemplarem a inefável melodia, tão naturalmente performada pelo pianista. Esta abrangia a sala inteira, transportando-os, ambos, aos mais idílicos e intemporais devaneios. A chuva amansava-se e fundia-se na atmosfera modelada por aquelas notas leves e assertivas. Amoleciam-se e conectavam-se os corações daqueles desconhecidos.
Luiza Toniolo, 11.ºD