«Era num parque. O luar
Sobre os vastos arvoredos,
Cheios de amor e segredos…
Os raios de Sol se somem,
O vento triste se cala…
E as águias revolteando
Dentre as nuvens estão olhando
Morrer o filho do Homem!
Martírio do coração!
Espanto da consciência!
Que toda a humana ciência
Não solva a negra questão!
Tomás de Alencar, «Os Maias».
Eça de Queirós.
Os cortinados
O dia que tinha nascido recentemente era ainda pálido. Por entre as cortinas da janela do quarto, surgiam raios de sol ténues, que despertavam tudo o que estava adormecido, evidenciando a nova ordem das coisas, que ressuscitava da noite anterior. A luz incidia sobre a jarra de rosas vermelhas da mesa-de-cabeceira e sobre os cobertores desalinhados. Em contraste com o estado de quietude da mobília, era bonito ver aquela cama desfeita, porque assim parecia mais humana, ainda com as marcas da antiga presença de um corpo sem consciência de si mesmo. Sim, ela tinha estado lá! E que bem que lhe apetecia ficar a dormir mais algum tempo, sentindo as suas pálpebras pesadas a fechar-se, levando-a para a paz do êxtase do sono. Ela queria que o dia passasse como se ela não existisse nem tivesse obrigações para com o mundo, que a obrigava a erguer-se de pé, descalça, no soalho frio e reluzente. Ali, o dia e o sol bem podiam brilhar, sem que ela fizesse parte dos acontecimentos. E dormir era isso mesmo: desaparecer dos campos da ação…
Mas era precisa coragem. Tinha de voltar à realidade. Abriu a janelas. Fitou as suas rosas vermelhas, oferecidas pelo homem que a visitara no dia anterior. Ela gostava daquele dandy, porque era o único homem do qual realmente podia gostar. Ele era um perdido, que já não tinha noção de moral e se rendera à própria vida. Porém, presenteava-a com saraus acompanhados de rosée em copos de cristal altos, recitando versos de poetas românticos, que inebriavam a sala, iluminada somente por um abajour de luz amarela.
Isso acontecia aos sábados à noite, quando ele se fartava de andar a percorrer os bares da cidade. Ela admirava nele o facto de sobreviver sem fazer algo de relevante: ele tinha o dom de apenas existir e ser com isso feliz. Tinha o dom de estar a ver um espetáculo somente por estar e de apreciar as horas num café a olhar para ninguém, sem pensar em nada. Ele estava, simplesmente. E nunca se aborrecia. Não tinha que se preocupar em passar o tempo com jogos ou coleções: bastava-lhe sair para jantar com os amigos e ter alguma vida social. Com ela, era o contrário: facilmente se tornava intolerante aos seres e depressa os detestava, achando-os deveras impertinentes e insípidos. Eles não tinham o fervor dele, não tinham o seu gosto de viver, de estar por estar. Só ele entendia o seu querer dormir, por saber que essa era a única maneira de ela ser como ele e nada fazer, sem disso se sentir culpada.
Depois da grande reflexão, após a abertura da janela, ela vestiu o seu vestido branco que lhe deixava os ebúrneos ombros nus. Calçou os seus elegantes sapatos pretos e saiu para a manhã fria. Todas as flores madrugadoras partilhavam da sua solidão. Toda a gente que passava parecia não fazer caso dela, embora a olhasse de soslaio. Ela sabia-o. Sabia que a contemplavam. De repente, os olhos grandes da multidão fundiram-se no olhar de uma só pessoa, e era como se ela a observasse através de outrem. E todos os transeuntes tinham o mesmo nome, o nome de Carlos da Maia.
Passeios tardios
Do mesmo modo que Carlos da Maia tinha nome, ela também o tinha: chamava-se Eva e pouco mais se podia saber sobre ela que não fosse a sua tendência para a melancolia. Essa sua característica frequentemente gerava mal-entendidos entre as pessoas que a conheciam superficialmente. A sua tristeza era tida como egoísmo, e a sua rebeldia e provocação levavam a que com ela se perdesse a paciência, ficando Eva com as faces coradas de vergonha, sem que pudesse olhar alguém nos olhos outra vez. Além disso, os seus compatriotas levavam a mal os seus silêncios infinitos, porque esses os ameaçavam com a superioridade dela para com o resto do mundo.
Nos jantares, aos quais era mais provável faltar, avisando em cima da hora que não podia vir, por mais que as pessoas se mostrassem agradáveis, Eva sentia-se sempre posta de parte. Havia sempre um momento interessante no qual contavam fervorosamente os simples e banais episódios das suas vidas vulgares: nessas alturas, costumava sorrir, fascinada pelas pequenas coisas, embora triste por não ter nada que contar. Isto porque não se considerava viva, a menos que tivesse momentos de prazer, sempre tão raros e fugazes! Muito gostavam os seres de se congratular com a sua insensibilidade, à qual chamavam de força, discorrendo em longos discursos sobre os seus feitos amorosos…! A ela bastava-lhe falar do sentimento do leve acordar, do seu leve atirar (e da pesada queda que dele advém) para a vida monótona… E, para uma vida tão monótona, estão os prazeres pequenos a parecer grandes! Mas, nós conhecemos as pessoas: elas não querem, pura e simplesmente, saber das nossas íntimas conquistas interiores. Se as exteriorizamos, olham para nós com ar escandalizado, porque é certo e sabido que essas coisas não se contam.
Naquele dia, Eva estava entre recusar ou não o convite de se encontrar com um amigo de Carlos, que ela não conhecia, e lhe queria devolver alguns objetos do passado. O encontro tinha ficado marcado num jardim selvagem, escuro , repleto de arvoredo e que, no centro, tinha uma espécie de coreto branco, cuja tinta se encontrava já esverdeada, prodígio cosmético da passagem inexorável do tempo. Em volta dele, estariam dispostas cadeiras e mesas para as pessoas se sentarem e se divertirem. Contudo, já ninguém lá ia, uma vez que já ninguém se divertia. E ela, como queria aproveitar o tempo ao máximo e saber quem era Carlos, de quem quase tudo ignorava, aceitou o pedido do estranho.
Como já dissemos, Eva envergava o seu vestido branco, que lhe dava um toque sensível, puro e leve, espelhando todas as suas emoções.
Pelos passeios, era emocional que andava, como se nada existisse, como se não tivesse de dissimular nada sobre si mesma, como se não usasse vestido algum. Já não existia e era somente uma alma invisível, que espia as pessoas para fazer troça delas interiormente.
Quando chegou ao fim do chão de terra batida, mergulhou por entre a densa floresta, avistando o coreto: à sua frente, estava um homem de casaco preto e comprido, com uma cartola na cabeça que escondia os cabelos pretos, selvagens. Ele voltou-se para a cumprimentar:
– «Por uma doirada tarde de Outono…», «Vi-te essa noite no esplendor das salas, com as loiras tranças volteando louca», ó minha «Flor de Martírio», meu «gosto cantante do tempo»!
– Por toda a vegetação deste jardim, quem é o senhor? – disse Eva, estupefacta e risonha.
– Tomás de Alencar, «seu cavalheiro e seu poeta!»
– Sois vós aquele que me procurava para me entregar as coisas de Carlos?
– Ah! Carlos! Esse garoto sujou-me tanta calça… Mas sim, sim, trago-lhe novidades!
– Por que é que não fala pessoalmente com ele?
– Porque temo que não serão boas notícias… Ele, já tão perdido, não iria reagir bem… São tempos difíceis para os que sentem, menina! Porque toda a beleza do ideal romântico está ultrapassada, está suja, tornou-se natural como uma latrina, um marzinho de pus!
– Mas… que terá isso a ver com Carlos? – retorquiu Eva.
– Passa-se que, desde a morte de Afonso da Maia, que Deus o tenha, a Casa do Ramalhete ficou abandonada, com as portas abertas, escancaradas. Eu e o Vilaça, por amor à família, tentámos mantê-la com a fortuna da família e o dinheiro dos meus versos, cada vez mais infames, loucos, impossíveis como impossível é o amor hoje! Agora, é só adultério, orgias, comentários maledicentes! Escória, escória, e mais escória! Pus! Pus!
– Alencar, monsenhor, está a dispersar… Pelo que percebi, o dinheiro de seus versos escasseia… Sinto muito… Eu também sou romântica, também sou louca! Eu compreendo-o muito bem… – e compreendia mesmo – Só gostava de saber o que se passou com os Maias…
-Oh, menina, não sofra com esse martírio, que não vale a pena! Ah! O nosso Carlos Eduardo desperdiçou o dinheiro em jantares, com bebidas, luxo, mulheres… Ele não estava bem na altura e… findo o dinheiro, vejo-me obrigado a vender a casa… Deixo-lhe aqui o que nela encontrei que era de Carlos: os livros de medicina, os seus chapéus, o chapéu do Vilaça, a mesa de whist do grande, do genuíno Afonso da Maia, as cartas da Gouvarinho e as de Maria Eduarda.
Eva ficou chocada com Carlos. Caíu -lhe o mundo aos pés, quando ouviu o nome das outras mulheres.
-Quem são as Gouvarinho e Maria Eduarda?
– Os amores de Carlos. A Gouvarinho, a condessa, bela como uma rosa e eterna como uma folha morta, sempre intransigente e adúltera, aquela desavergonhada! E a Maria Eduarda, delicada como a água que escorre num riacho, é a completa rutura da moralidade! Um horror! Pus, pus!
– Como romper algo que não existe? – brincou Eva.
– Pois… é que Maria Eduarda era…
– Era?
– A sua irmã.
O choque consumiu Eva, que olhava para Alencar com os olhos muito abertos e apenas balbuciou:
– Como…? De amante passa a irmã??!
– Receio que sim… Cá para mim ,foi o pus da sociedade que o levou a essa tragédia…! Meu pobre Carlos! O teu grande amor ser sangue do teu sangue… É por isso que o ar está viciado, com esse cheiro a literatura latrinária, que todos imitam! E…por falar em latrina, em realismo, trago aqui «Memórias de um átomo», inacabado… Aquele Ega…! Nunca mais o vi! Penso que Carlos gostaria de ficar com a obra…, mas não fique triste, menina, que, apesar de tudo, Carlos é um cavalheiro por mim tão amado quanto seu pai, o meu Pedro! Aquilo é que era um romântico, dominado pelas paixões à Romeu! Sim, no tempo em que a moral dominava! Mas nem o Pedro teve a força de não transmitir a perdição errante dos românticos, que vagueiam à margem para esquecer… Por meu lado, encontrei o sentido para a vida: a democracia.
Dito isto, Eva recebeu os objetos da mão de Alencar. O seu terno olhar segredou-lhe que não estava sozinha no mundo. Iriam sempre existir condessas Gouvarinho, com os seus braços exigentes e amor mecânico, a chamar sacrifício ao champagne, em jantares intermináveis. Alencar não contou a Eva a história de Maria Eduarda, que era demasiado imoral para ser narrada minuciosa e completamente, como se se não tratasse de uma desgraça.
Todavia, a dor maior de Eva residia no facto de Carlos ter tido uma vida passada, misteriosa, amaldiçoada pela pistola de Pedro da Maia. O seu amado pretendia agir como se nada fosse, sem nada lhe dizer, mas ela, com os ciúmes, percebera o porquê de a multidão a fitar com preconceito: ela amava um incestuoso, um vencido, pelo que devia ser desprezada.
Grande parte da sua credibilidade estava perdida, mas não seria ela, Eva, a virar as costas àquele que amou antes de toda e qualquer pessoa, mesmo que Carlos ninguém amasse. De qualquer modo, não podia escolher perder a única pessoa que tinha.
E foi naquela tarde que preferiu o amor à moral. Não sabia o que diria disso o poeta Alencar, que desaparecera, entretanto, sem dizer mais nada. A ele também tudo lhe pesava na sensibilidade de poeta.
A essência da noite
Eva, para meditar sobre o que soubera naquela tarde infame, deambulou ainda pelas ruas até que o ocaso se anunciou. Correu por todo o lado, falou sozinha e negou toda a razão. Encostou-se a um candeeiro de rua e pôs-se a chorar, mas discretamente. Porque não fazê-lo ali? As pessoas passavam sem reparar em nada. As lágrimas tímidas e cristalinas rolavam-lhe pela face abaixo, e aquilo não era suficiente para mostrar tudo o que sentia. Carlos podia não lhe ter amor, como não tinha à Gouvarinho e a Maria Eduarda! Assim sendo, Eva não tinha o amor de ninguém. E se o navio do amor fosse ao fundo, ela iria também.
Chegou a casa à pressa. A porta estava aberta. Subiu as escadas que davam para o seu quarto a correr. Na sua cama de lençóis brancos, para sua surpresa, estava Carlos, que adormecera por se ter cansado de esperar por ela. Na mesa-de-cabeceira, as rosas da noite passada murchavam e as suas pétalas caíam já sobre a madeira. A seu lado, colocou «Memórias de um átomo» e as cartas.
Então, Eva não hesitou em ir buscar um copo de água, no qual misturou um soluto de um frasquinho que tinha guardado. Vestiu a camisa de noite e bebeu a solução perfumada. Deitou-se ao pé de Carlos e decidiu que era ali que queria ficar. A sua pele estava quente. Era isso convidativo.
Em pouco tempo, Eva também adormeceu, como se nunca mais fosse acordar.
Fim
Margarida Pereira, 11ºA.