O amor intemporal de Camilo

Quando nos impõem a leitura obrigatória de uma obra específica para a disciplina de Português, somos muitas vezes tentados a desdenhar da escolha da obra, ainda que pelo simples facto de a escolha não ter sido nossa. Revoltamo-nos contra a ideia de ler um livro forçadamente, mesmo que esse livro seja um elemento basilar da literatura portuguesa, por nos ser tirada a oportunidade de nos aventurarmos e de apreciar uma obra de livre e espontânea vontade. E é esta mesma espontaneidade que está também, muitas vezes, em falta na opinião que retemos da obra, presa e limitada pelo contexto em que nos é proposta. Eis que Camilo Castelo Branco nos é apresentado para tentar quebrar essa rotina. Em menos de 200 páginas, o autor impetuoso e rebelde do Romantismo, que tão bem sabia manobrar o género que se propunha adotar, conta aos leitores a história do seu irreverente tio, vítima voluntária do degredo em defesa do amor. Como o sobrinho, o coração de Simão Botelho assumiu as rédeas, levando o jovem fidalgo numa espiral de acontecimentos que nem o mais severo dos freios conseguiria suster, na tentativa de salvação de um amor proibido (mas correspondido) por Teresa de Albuquerque, que se encontra separada de Simão não só por aquela janela de seu quarto, mas também pela querela entre os pais de ambos. São as convenções sociais que  transformam cada um dos fugazes momentos em que os dois estão juntos em secretos e perigosos encontros na escuridão, com Mariana a segurar uma candeia ao amor que sabe nunca poder ser seu, mas que ela se esforça desesperadamente por manter, como forma de reverência a Simão. É, pois, um Amor destes que atirará os três jovens para o abismo, assim como todos os que os tentarem ajudar, na certeza porém de que este é um preço que qualquer um deles está disposto a pagar.

Em Amor de Perdição, Camilo Castelo Branco aborda um ideal para nós difuso: o de sacrifício absoluto em nome do amor incomensurável ao outro. Amor que muitos de nós mal começamos a descobrir e do qual muito pouco ou nada sabemos. Pelo menos, muito pouco ou nada podemos descrever. O que é o amor, senão subjetivo? Como analisar o amor sem o experienciar, e como o viver depois de o ter experienciado? Como podemos aprender a linguagem de algo tão errático? O amor será, portanto, algo que se tenta atingir, mesmo sem se alcançar, um desafio gratificante tanto pelos obstáculos que lhe são inerentes quanto pela recompensa que apresenta. Quer seja um doce paraíso, um apaixonante veneno, uma constante preocupação, um corroer que constrói rosas, corações, pétalas ou espinhos, o amor é, sem dúvida, uma força que nos move, um ente desconhecido e insondável, tanto querido como amaldiçoado, que nos exige nada mais do que todas as fibras do nosso ser. Se no século XIX, quando os livros seriam o único local de expiação das limitações do mundo, as senhoras encontravam apaziguamento da sua sede de drama nas páginas da novela de Camilo — que a escreveu a pensar na sua romântica leitora, só ela possuidora da sensibilidade necessária para verdadeiramente compreender e interpretar os acontecimentos nela descritos —, o que encontramos nós? Dificilmente se seguiriam os passos de Simão e Teresa à letra, já que estes foram condicionados pela época em que viviam, mas talvez fosse demasiado desdenhoso da minha parte assumir que não há lições a serem tiradas do Amor de Perdição. É-me impossível pensar nesta obra sem pensar em sacrifício, em dedicação, em devoção, não só em Simão e Teresa, que frequentemente monopolizam o foco da ação, mas também em Mariana. Faltam-me termos para descrever uma personagem como Mariana, com um amor tão profundo e tão sincero por Simão que, ao longo toda obra, zela pela sua felicidade, oferecendo-o de livre vontade a Teresa, que ela sabia ser o verdadeiro objeto das paixões do seu amado, o qual não se apercebeu do sofrimento do seu anjo da guarda, do sofrimento autoinfligido em prol daquele que colocava acima de todos. Curou-lhe as feridas, entregou cartas à mulher que ele amava, acompanhou-o no exílio e, finalmente, quando viu a razão do seu viver expirar ao seu lado, reencontrando-se com a que mais amava, deu a sua missão por terminada e entregou-se às ondas, incompleta por nunca ter sentido os afetos de Simão, mas realizada por ter lutado sempre, nas sombras, pela sua felicidade. Duas paixões destinadas a anularem-se, mas que se alimentavam uma à outra: Simão e Teresa, que resistiam ajudados por Mariana, e Mariana e Simão, unidos pelo objetivo comum de juntar Simão e Teresa.

No fim, a desgraça inevitável abate-se sobre os protagonistas, como é característico do drama romântico. Com a perícia e imaginação de Camilo, que preenche os vazios históricos das peripécias de seu tio, Amor de Perdição presenteia-nos com uma paixão (ou paixões) destinada a falhar, mas cuja beleza reside justamente no facto te terem falhado, de ter acabado com os intervenientes, definhando voluntariamente, agarrados ao amor que sentiam pelo outro. Ultrapassando o público-alvo eleito por Camilo, esta obra de conteúdo forte e aparências modestas, eloquente, é um hino ao amor e aos ideais românticos, com alguma ação e morte à mistura, que não só nos dá a conhecer os códigos morais de outrora, como também permite meditar sobre os nossos. É possível encontrar também humor e sátira nesta obra, quem sabe uma crítica aos serviços prestados pela Igreja no que envolvia o guiar do coração, aliviando momentos de iminente tensão, dos quais não há falta durante todo o livro. A homenagem feita por Camilo Castelo Branco ao seu tio continua a ser um monumento ao sacrifício amoroso, deliciosamente articulado pelo autor em episódios de leitura gratificante, ainda que de curta duração.

Se não é um guia da experiência amorosa, objetivo difícil de concretizar até pelo génio de Camilo, Amor de Perdição é, para além de um ótimo exemplo da novela sentimental romântica, um ressuscitar da ideia de amor impossível, e, por isso mesmo, mais recompensador, uma introdução aos infinitos graus de profundidade do amor, assim como de maneiras de o viver, que tenta provar que o romance nunca morre, pelo menos na mente do leitor.

Mário Ribeiro 11.º A

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