O Flagelo da Indiferença

Neste momento tão atípico das nossas vidas, um pai e uma filha decidiram desafiar o confinamento e libertar a imaginação….

Havia alguns meses, talvez, que a família não passava reunida sequer um domingo. Ironicamente, flagelados não por um vírus, os quatro membros eram apartados pelo trabalho, pelas obrigações e pela incapacidade de priorizar momentos de união entre si.

Mónica, Felipe, Vitor e Nicole habitavam a mesma moradia. Vasta, cómoda, elegante e eternamente à espera de risos que preenchessem as suas amplas repartições. Esta, inerte, jazia na frieza e na solidão a que seus donos ausentes a abandonavam. A casa suplicava por ação, fossem piadas, carinhos ternos, afago, choro, brigas ou quaisquer outros sentimentos. As paredes, ocas, desejavam tornar-se um lar. Era disso que padecia a família, da passividade.

Mónica, angustiada pelo tempo de sobra de que agora dispunha, perguntava-se o que é que dele poderia fazer. Sempre quisera pintar com as crianças, criar uma horta, brincar de argila com os pequenos ou cozinhar biscoitos, talvez até construir uma casinha na árvore… Os seus pensamentos foram interrompidos quando Vitor, de ar tímido e infantil, baixa estatura e brilhantes olhos castanhos, rompeu na sala de estar:

̶ Mãe! A professora, num trabalho, pediu que descrevêssemos o que mais gostamos de fazer com os nossos familiares. O que é que mais gostamos de fazer juntos?

̶ Filho, diz que adoramos pintar juntos. Também descreva pique-niques no parque, ou viagens à praia…

̶ Está bem, Mãe. Mas… Só me lembro de termos pintado juntos uma vez, quando eu era bem pequeno… Não faz mal inventar, faz?

Esta questão resistiu nos devaneios da mulher. “Inventar… Porque será que tínhamos de inventar momentos em família? Achei que fôssemos tão próximos…” divagava ela.

Felipe, um pai de família acometido pelo stresse, via-se jubiloso, leve e revigorado. “Férias!” idealizava ele “Finalmente poderei acabar de assistir àquela minha série de TV predileta!”.

Encontravam-se, então, os quatro exilados. Cada um nos antípodas da residência, mais longe de si mesmos que nunca. Durante alguns dias quedaram-se assim. A Nicole só aparecia à hora do almoço. Constantemente enclausurada no seu quarto, era como se os seus pais fossem os contagiados e, ela, a única sadia da família, evitando os seus próximos.

No quinto dia de isolamento, Nicole apresentou sintomas da doença. Fora logo diagnosticada e devidamente atendida pelos médicos mais competentes.

A notícia abalou a família toda. Mónica, desesperada, continha o seu pranto. A majestosa residência sentia-se finalmente viva. Sentia. Sentia enfim alguma coisa.

Nos dias que se sucederam, o casal e o filho passaram também a ter sintomas, uma vez que anteriormente já tinham sido expostos à doença. Estes foram forçados a um convívio maior. Por ordens médicas, os doentes tinham de fazer refeições às mesmas horas. Os quatro integrantes reuniam-se, por isso, trêz vezes ao dia. Havia longos anos que não tinham a possibilidade de compartilhar momentos de tal simplicidade como aqueles. Conheciam-se uns aos outros. Os irmãos brigavam. Mónica e Felipe trocavam palavras de amor.

A casa, a qual parecia nunca antes ter sido habitada, acomodava as suas primeiras almas. Era a aurora da sua vida como um lar. Expandia-se agora pelas brigas efervescentes entre os irmãos, que logo faziam as pazes. Dotava-se de cor, de ação e de sentimentos.

Os seus planos individuais para a quarentena foram postos por água abaixo. Felipe logo renunciou da sua série em troca dum filme em família e até mesmo Nicole decidiu reduzir o tempo que despendia em vídeo-chamadas com os seus amigos.

Mónica, por sua vez, desfez-se da sua procura por uma ocupação, um afazer, um preenchimento do seu tempo, que agora se via enfim libertado. Deparou-se com a surpreendente realização de que o que necessitava verdadeiramente (e urgentemente) era de tempo. Tempo que abrisse portas, janelas, enfim, que abrisse o seu coração inteiro para oportunidades de descobrir. Tempo em si, livre e puro. Mónica precisava de disposição para entender e, a partir daí, passar a suprir a falta que lhe assolava: a falta de reflexão, de verdade em sua vida e, principalmente, de união com aqueles que ama.

A família, acometida por aquela enfermidade, não poderia, portanto, ter sido mais abençoada. Aquela doença, por mais ameaçadora que pudesse ser, não se comparava à ameaça que antes distanciava a família: a desunião entre si e a desunião consigo próprios.

Contagiados pela emoção, enfermos pela intimidade e pelo ânimo, essa época consistia na proliferação dos risos, do apego, da verdade e do amor. A epidemia instaurou, pois, na família, a melhor doença que poderia existir.

Luiza Toniolo, 11.ºD

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