O Universo Distópico de “Laranja Mecânica”: do Livro ao Filme

Capa da nova edição do livro Laranja Mecânica

“Laranja Mecânica” (1975), de Stanley Kubrick

 

“A bondade é uma opção. Se um homem não puder optar, deixa de ser homem”

Inúmeras foram as obras que marcaram o panorama literário e cinematográfico do século XX, pelas mais variadas razões: pelo dramatismo das mesmas, pelo indomável amor que pauta algumas ou ainda pela brutalidade e cinismo que demonstram as visões do mundo de outras. Romance incontornável deste mesmo período, adaptado genialmente ao cinema por Stanley Kubrick, A Laranja Mecânica, pela sua violência e ousadia, constitui uma das mais diretas interpelações à sociedade, forçando-nos a questionar a nossa passividade e, sobretudo, o sentido que atribuímos às nossas vidas. Estas atitudes são analisadas através uma cruel distopia, que, além de pouco diferir do Mundo em que vivemos, joga com paradoxos improváveis.

Publicado em 1962, obra-prima de Anthony Burgess, o livro narra, em primeira pessoa, os acontecimentos que marcaram a adolescência do sádico Alex. Destaca-se, sobretudo, pelo forte impacto que provoca no leitor e pela originalidade, conquanto siga a tendência distópica vogante, iniciada por Nós e Admirável Mundo Novo. Escrito em “nadescente”, linguagem inventada pelo autor — e que, a princípio, pode dificultar a compreensão do enredo —, é o relato de um mundo chocante, onde, de noite, a ultraviolência constitui a ocupação dos jovens.

Deste modo, num primeiro momento, o protagonista, acompanhado pelos seus amigos, realiza uma série de atentados contra os indivíduos que, por pouca sorte destes, vai encontrando pelas ruas da cidade. Culmina numa aldeia onde agride, de várias formas, um casal. O grupo regressa a uma leitaria onde se percebe, com grande espanto, aliás, que o personagem principal é fã de música clássica, especialmente de Beethoven. No dia seguinte, ao assaltar uma casa, Alex acaba por cometer homicídio e é traído pelos seus colegas, sendo entregue às corruptas autoridades. Cumpre dois anos da sentença de catorze, sujeitando-se, no término destes, a um tratamento experimental, que alegadamente o tornará incorruptivelmente “bom” (privando-o do livre-arbítrio) ao fim de duas semanas de interminável agonia. Sendo liberto, com dezasseis anos, torna-se uma vítima da sociedade injusta que outrora maltratou. Instrumentalizado para fins políticos, é, uma vez mais, traído pelos seus novos companheiros, que o forçam a uma tentativa de suicídio falhada. No final, é compreendida a verdadeira natureza do ser humano e posta em evidência as suas contradições.

Na tentativa de subjugar a vontade, percebemos que nem sempre advogamos o “Bem”, espelho da nossa interessada hipocrisia, levando-nos mesmo a refletir, apesar de toda a violência impingida por Alex, se não será a ele que nos associaremos instintivamente (chegamos mesmo a questionarmo-nos se se tratará de um sociopata!). Para isto, contribui a escrita despretensiosa do autor, exímio a influenciar-nos segundo a visão do protagonista, sofrendo com ele e cometendo os mais infames crimes ao seu lado. Sentimos os arrebatadores impulsos à violência, o desconcerto interior do personagem e as cogitações que estabelece perante a traição dos amigos, bem como o abandono que experiencia, sempre acompanhados pela imagem mental da orquestra que tão teimosamente é convocada nos momentos mais insólitos do relato. Esta, juntamente com as inúmeras interpelações diretas ao leitor e a associação a imagens de dor excruciantes, proporciona um contraste único, espelhando não só as nossas próprias incompatibilidades como pessoas, mas como comunidade.

Posto isto, é-nos oferecido um retrato completo da sociedade pelas suas dicotómicas faces: uma altruísta e bondosa; a outra cruel e mesquinha. É estabelecido um alerta à nossa inatividade, à nossa passividade perante a violência e perante a perda de valores morais em prol da segurança que, supostamente, nos é garantida pelo Estado, sem nos questionarmos qual o seu custo. Neste registo cínico, Burgess denuncia a perda da nossa liberdade, tal como aconteceu ao jovem Alex, já que nos tornamos autómatos de uma máquina social injusta e frequentemente hipócrita, na qual se dá preferência ao despotismo ao invés do livre-arbítrio. O autor aponta, assim, para a distopia que vivemos, a qual se estende muito para além da sua obra, cujo título deriva de um breve momento em que se denota, ironicamente, a sua autorreferencialidade: A Laranja Mecânica constitui o título de um volume escrito por uma das personagens contra quem Alex atenta e que, posteriormente, o ajuda. Desta maneira, torna-se numa interpretação conotativa da obra em que se insere e através da qual é feito um aviso para que não nos tornemos máquinas sem vontade própria. Tendo em consideração que o conteúdo desse livro fictício se aproxima do percurso existencial de Alex, é com espanto que constatamos que o protagonista o qualifica de “louco”.

Igualmente irreverente, e, sem dúvida, mais afamada, é a adaptação à sétima arte realizada, em 1971, por Stanley Kubrick, com Malcolm McDowell no papel de Alex. Aclamado pela crítica, marco histórico do cinema moderno pela sua ultraviolência gráfica levada ao extremo, é bastante fiel à versão em livro — conquanto alguns momentos deste último sejam suprimidos para a coesão do filme e em prol das trademarks de Kubrick —, pois quer os diálogos quer a narração em voz-off são, sem exceção, ipsis verbis os da obra de Burgess. Nomeado para quatro Óscares da Academia, entre os quais “Melhor Realizador” e “Melhor Filme”, a longa-metragem é verdadeiramente hipnótica. Apesar de pouco conhecidos, os atores apresentam performances competentes, e, se superficiais, apenas o são por os seus papéis o necessitarem, destacando-se, sobretudo, pela mestria do realizador. Especialmente McDowell cuja interpretação é bastante suscetível de provocar calafrios, pelo caráter imprevisível, hedonista e impulsivo da personagem que interpreta.

Contudo, o que confere ao filme o estatuto de ícone que ostenta é o estilo notável de Kubrick: a ausência de taglines, a familiaridade dos planos em conjunto com as cores gritantes, a geometria dinâmica de basicamente de tudo o que em cena entra. Neste ponto, é facilmente equiparável à sua obra de culto “2001 – A Space Odissey”, que é aludida através de um cameo, descobrindo-o apenas um olhar atento. Já a combinação de música e imagem é das mais notáveis alguma vez feitas, criando contrastes profundos, visíveis na mítica cena onde um marido e mulher são violentamente brutalizados ao som de “Singin’ in the Rain”. Kubrick desafia todos os espectadores a alguma vez esquecerem este momento do filme ao ouvir a canção: associada, antes, a momentos de felicidade e amor pleno, agora pontua momentos de lancinante dor. O mesmo acontece com a Nona Sinfonia de Beethoven, que aqui é ligada à violência, a Hitler e a um desesperado suicídio. Pretende-se, deste modo, associar os espectadores a Alex (que criou aversão também à música), chocando-os e tornando a obra épica e controversa.

Para mais, afirme-se que não é de todo o filme recomendado para aqueles mais suscetíveis de serem impressionados, já que, certamente, o serão, de tão genuína a realidade distópica representada. Todavia, para quem o critica pelo seu excesso de violência, destaque-se que não é meramente a imagem fílmica que o torna agressivo: muito pelo contrário, as representações das infâmias nada são comparadas com a incómoda interrogação a que somos incitados e que já referida foi. Daí advém a real polémica associada à obra, original e em nada conservadora.

Concluindo, considero que A Laranja Mecânica constitui não só um excelente romance como também um filme icónico, que, apesar de já não ser recente, continua a marcar gerações e a constituir uma obra de culto. Retratando uma sociedade totalitária incrivelmente violenta, é deveras atual, pois somente nos mostra uma perspetiva alternativa — possivelmente um presente que nos recusamos, ignorantemente, a reconhecer —, incrivelmente hipócrita e injusto. É uma sátira à nossa passividade e à aceitação cega do que nos é imposto.

Rui Pinto, 10.ºF

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