Once upon a time: Na cozinha da tradução dos Lyrics 1962-2001

Uma tarde, no final do Verão de 2005, telefonou-me o Francisco Vale, editor e proprietário da Relógio d’Água: “Não queres traduzir para português a obra lírica completa do Bob Dylan? Estou a pensar comprar os direitos aos americanos…” Para lá do baque, tentei ganhar tempo: “Deixa-me pensar uns dias…”

Nos anos 60 os meus pais tinham uma quinta nos arredores do Porto, com uma fronteira aquática no seu limite sul, o rio Douro. Nas férias da Páscoa de 1966 eu e um amigo passámos lá uma semana, sozinhos com as nossas latas de atum, acampados a três metros do solo num espigueiro, um casinhoto onde se guardava o milho, bem arejado e a salvo de roedores.

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Na fotografia, estou nas escadas e o tipo sentado na ombreira da porta é o Rui, hoje oftalmologista no Porto. Se reparar bem, junto à mão esquerda dele passa um fio que cruza um dos pilares de granito em que assenta o espigueiro e se perde no canto direito da fotografia. É um fio eléctrico e a ele estava ligado um gravador de fita Gründig, a nossa companhia sonora permanente.
Nessa semana ouvimos incessantemente um álbum que aparecera em Portugal não há muito tempo, embora já tivesse sido editado nos Estados Unidos há quase um ano. Intitulava-se Highway 61 Revisited, o cantor chamava-se Bob Dylan, as músicas eram todas dele e eu nunca tinha ouvido nada parecido, tão estranho e tão poderoso. Tão hipnótico e pleno de detalhes a absorver que mal a última música acabava eu puxava a bobina para trás e fazia começar tudo de novo.
Se, à época (tinha 13 anos), alguém me dissesse que um dia seria convidado a traduzir Dylan, eu acreditaria tanto como se me dissessem que havia vida em Marte e sentir-me-ia tão esmagado pela honra e pela responsabilidade como se me comunicassem ter sido escolhido para gerar um profeta…
“Vê se não demoras muito a decidir”, disse o editor do lado de lá do fio, “o meu direito de preferência sobre a tradução está a acabar…”

Mas, voltando a essa tarde do Verão de 2005, para além da honra e da responsabilidade quase cósmica havia ainda os aspectos práticos: a obra a traduzir (Lyrics 1962-2001) era imensa (600 páginas de uma mancha densa, quase tamanho A4, em American-English); a poesia labiríntica; as interpretações em volta do que ele escreveu geraram milhares de teorias interpretativas, teses, 500.000 presenças activas na net.

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Uma semana depois acabei por dizer que sim, mas apresentei uma contraproposta: sim, mas só em boa companhia. Esse a meias andara, entretanto, a preparar. Tinha uma amiga, licenciada em inglês e alemão, especializada em literatura anglo-saxónica, de quem conhecia a demonstração do gosto pelo rigor e a capacidade de trabalhar em regime de escalada, passo a passo, palavra a palavra.
E assim foi, durante dois anos e meio lá se foram as nossas horas vagas, as férias. Metemos Dylan na cabeça como uma obsessão, como uma maldição: comprei os muitos discos que ainda não tinha, encomendei livros, passei dois anos embebido na sua música e embrenhado na leitura do que ele tinha escrito, do que se tinha escrito sobre ele e sobre a sua obra. E, agarradas às suas músicas, às suas letras, vinha o caldo a partir de onde tudo aquilo explodira: as influências literárias, musicais, cinematográficas, as musas; e, como consequência, lá estávamos nós a ler sobre poesia inglesa, baladas escocesas e irlandesas, sobre blues e lendas dos blues, a rever Fellini, Hitchcock e Scorsese. Até debruçados sobre coisas aparentemente menos do domínio das artes como activistas políticos, gangsters, jogadores de basebol e pugilistas, pois Dylan tudo cantou, como qualquer songster que se preze.

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A Gina mora em Braga, eu no sul, separam-nos 400 km de estrada. Então, todo o trabalho foi feito usando o mail e só nos encontrámos meia-dúzia de vezes ao vivo para discutir critérios,  afinar versões finais dos poemas, rever as provas dos dois extensos volumes em que tudo isto se transformou. Nesses longos encontros em Braga, em permanência vigiados pelos olhos domésticos das duas cadelas da Gina e invadidos pela companhia do seu gato preto, chupámos quilos de rebuçados de mentol em maratonas que duravam 12 horas por dia e durante as quais discutíamos, à exaustão, a decisão a tomar sobre uma palavra, um verso, uma estrofe, uma música, o título definitivo de uma canção, o texto de uma nota de rodapé; se sim ou não uma vírgula.
Foi duro e tanto mais o foi porque tínhamos decidido, como axioma geral, que a nossa abordagem da tradução seria asperamente literal, isto é, iríamos respeitar em absoluto o que estava escrito e não nos deixar cair em tentação pelo que talvez fosse a intenção do autor, o sentido das palavras, a intuição ou a sensibilidade…
Essa opção causou-nos frequente sofrimento estético e eis-me desiludido por não conseguir outra palavra mais densa do que ‘brincalhão’ para a misteriosa figura do Joker na apocalíptica letra de “All Along the Watchtower” (“Ao Longo da Torre de Vigia”), algo que retratasse melhor a enigmática figura, algo diabólica, retratada nas cartas de jogar. Nenhum dos dois escapou a essa frustração e agora é a Gina a percorrer todos os dicionários, todos os sites possíveis, todos os fóruns de tradutores, em busca de alternativa à ‘pandeireta’ do “Mister Tambourine Man” (“Senhor da Pandeireta”), que imaginara poder traduzir por “tamborim”, acabando por não lhe restar alternativa que não a rústica pandeireta para uma canção passada numa melodiosa manhã de sonho. E nem as sentenças esclarecidas de Vladimir Nabokov sobre traduções nos consolavam totalmente: “Um autor torturado e um leitor enganado, este é o inevitável resultado da paráfrase artística. A única finalidade e justificação da tradução é carrear a mais exacta informação possível, e isso só pode ser conseguido por uma tradução literal, com notas.”* Muitas notas e muitos rebuçados de mentol…

Que a edição seria bilingue sempre foi um dado adquirido entre nós e o editor, mas inicialmente foi ventilada a hipótese de a mancha principal do livro consistir na versão em português de cada  canção, aparecendo o texto original em nota de rodapé, os versos de cada estrofe apresentados na horizontal, separados por traços. Algo deste género:

Once upon a time you dressed so fine /You threw the bums a dime in your prime, didn´t you?/People’d call, say, “Beware doll, you’re bound to fall”/You thought they were all kiddin you/You used to laugh about/Everybody that was hangin’ out/Now you don’t talk so loud/Now you don’t seem so proud/About having to be scrounging for your next meal.

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E isto é apenas a primeira estrofe de uma canção que tem oito! A Gina e eu ficámos horrorizados com esta sugestão editorial, sensatamente apresentada como forma de poupar espaço e bastante utilizada por aí. Para além da questão estética da apresentação, desejávamos que o todo surgisse perante os olhos do leitor em total transparência e clareza comparativa: na página da esquerda o texto original, em inglês, e na página da direita, em espelho, a tradução do mesmo; alinhadas de modo a que a cada linha em inglês à esquerda correspondesse, taco-a-taco, a sua legenda em português à direita.

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Não foi difícil convencer o editor da bondade dos nossos argumentos e houve um último que decidiu as hesitações: seguidores de Nabokov, no que se refere a traduções, e conhecendo a prosa de Dylan, prevíamos que o texto iria ter que contar com abundantes notas de rodapé dos tradutores. Agora imagine-se o que seria a mistura do comboio de linhas do texto em inglês com a serpentina das numerosas e extensas notas de pé de página. Uma selva em que, em cada uma das páginas do livro, a metade inferior seria ocupada com um caos visual que arruinaria a atenção ou o entendimento do mais abnegado dos leitores.
Tudo isto acabou por condicionar a dimensão física da tradução para português da lírica de Bob Dylan (Canções 1962-2001) e a obra teve de ser editada em dois extensos volumes: o primeiro, com 665 páginas, saiu para as livrarias em Setembro de 2006 e contém as canções escritas entre 1962 e 1973. O segundo, 754 páginas, foi editado em Junho de 2008 e contém as canções escritas entre 1974 e 2001.
As tais notas de rodapé dos tradutores, que prevíamos abundantes, acabaram por ser em número de 409 e as notas de fim de volume, com considerações de enquadramento de álbuns e canções, vieram a gastar 30 páginas do total da tradução.
As reacções à edição dos dois volumes foram parcas e discretas e rondaram a dezena nos jornais portugueses (PúblicoExpressoDiário de NotíciasVisãoSol, entre outros), a que podem ser somadas mais duas ou três notícias sobre a novidade literária em blogues brasileiros. A grande maioria dos comentários limita-se a duplicar os textos que surgem na contracapa ou nas badanas dos livros e apenas uma se pode considerar minimamente crítica do conteúdo da tradução, a do Diário de Notícias que se intitulava “Dylan Legendado em Português” (João Morgado Fernandes, 15 Dezembro 2006, crítica ao Volume I).

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Mas, em termos de crítica, a maior satisfação dos tradutores viu a luz do dia em 28 de Julho de 2008 em http://christopherrollason.
spaces.live.com, blogue de Christopher Rollason. Este senhor é um inglês que vive em França e é um conhecido especialista da obra de Bob Dylan, em cujo nome se tropeça constantemente quando se lêem obras de referência sobre o compositor.
Uma noite, na dúvida aguda gerada por uma opção a tomar sobre o sentido de determinada situação dylaniana encontrei um artigo de Christopher Rollason sobre o assunto. Esse artigo não dava resposta à nossa dúvida, mas andava perto. Não foi difícil encontrar o endereço electrónico do homem e escrevi-lhe um mail em inglês, pedindo a sua opinião. No dia seguinte recebi, com grande espanto pela resposta pronta e pelo idioma usado, uma resposta dele em português. Tinha vivido em Portugal entre 1979 e 1987, onde foi docente na Universidade de Coimbra. Tem obra publicada sobre José Saramago e outros temas portugueses! Recorremos à sua ajuda várias vezes, as suficientes para lhe agradecermos a disponibilidade e o apoio na edição do segundo volume.

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Os dois volumes das Canções 1962-2001podem ser encontrados nas livrarias ou encomendados directamente para a editora em www.relogiodagua.pt.

http://www.semcompromisso.com/2010/05/once-upon-time-bob-dylan-na-cozinha-de.html

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