Personagem polifacetada da vida cultural portuguesa (Foz do Douro, 3 de Janeiro de 1942 — Lisboa, 27 de Abril 2014). Poeta, romancista, ensaísta, tradutor, foi secretário de Estado de dois Governos provisórios, desempenhou funções directivas na RTP, na Imprensa Nacional e na Comissão para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Em 1999, foi eleito deputado ao Parlamento Europeu.
Para Vasco Graça Moura, a poesia “é uma questão de técnica e de melancolia”, crescendo d’ A Furiosa Paixão pelo Tangível através de uma densa rede metafórica que combina a intertextualidade, relacionada especialmente com Camões, Jorge de Sena, Dante, Shakespeare e Rilke, objectos privilegiados de estudo deste autor, e uma tendência ironicamente discursivista assente na agilidade sintáctica. É autor de três ensaios sobre Camões: Luís de Camões: Alguns Desafios (1980), Camões e a Divina Proporção (1985) e Sobre Camões, Gândavo e Outras Personagens (2000). Em 1996, a sua obra foi reunida em volume. Dos títulos deste autor, podemos salientar Concerto Campestre, os romances Quatro Últimas Canções (1987) e Meu Amor Era de Noite (2001), os livros de poesia Uma Carta no Inverno, que lhe valeu o prémio da APE, e Poemas com Pessoas (ambos de 1997). Recebeu o Prémio Pessoa em 1995 e a medalha de ouro da Comuna de Florença em 1998, ambos atribuídos à sua tradução da Divina Comédia de Dante.
Segundo Hugo Pinto Santos, “na base desta obra, é legítimo pressupor um projecto não simplesmente literário, mas cultural. Este poeta descende de uma linhagem ilustre, que, por sua vez, se inscreve no xadrez da História e das artes, e que cruza os diversos elementos em jogo nessa dinâmica. Pelo que são eixos desta poesia a relação entre vida e arte, as vicissitudes do tempo e o lugar do sujeito como agente da sua obra e biografia. V.G.M. é, acima de tudo, um humanista em pleno século XXI, autor de um classicismo improvável num contexto sobretudo hostil à elevação de padrões culturais. Por outro lado, a sua postura, vincadamente anti-romântica, deliberadamente desprendida, que tende a anular a encenação e o dramatismo tão associados aos bastidores da escrita, é, ao mesmo tempo, estimulante para quem lê, e reveladora para quem queira perceber a sua obra e o seu posicionamento enquanto poeta.”
No poema “domingo de páscoa”, exemplo perfeito das características enunciadas, o poeta revisita a Páscoa da sua infância, com uma ironia comovente e enternecedora.
domingo de páscoa
no domingo de páscoa, vinha o compasso
a descer a rua íngreme
do monte belo. primeiro, ouvia-se, entre longe e
perto, uma campainha e alguém ia à janela
para exclamar: “— já vem ao cimo da rua!”
começava-se então a espalhar
pétalas e verdura em profusão
no degrau da entrada. a impaciência
aumentava porque havia vizinhos
muitíssimo católicos e cheios de indulgências
e o compasso tinha de ir primeiro às casas deles
que eram antes da nossa. levava imenso tempo, até que,
por fim, a campainha tilintava festiva na soleira,
sentia-se o roçar das opas de seda, o ranger do calçado novo,
e viam-se cabeças num tropel com muita brilhantina,
rodeando o padre, sorridente, compenetrado,
a avançar direito aos nossos penteados,
risca ao lado os rapazes, tranças e laçarotes as meninas,
rescendendo todos a esmero e sabonete
nas roupas de ir à missa.
a minha mãe chegava entretanto, depois
de ter ido uma vez mais
ver se na mesa a toalha estava bem alisada
se o pão-de-ló, as amêndoas e o
vinho velho da praxe estavam compatíveis.
o meu pai metia uma nota dobrada num sobrescrito
o padre entrava, dizendo: “— aleluia, aleluia!”
aspergia água benta, afagava-nos a cabeça,
e, logo atrás, avançava o sacristão, acolitando,
ou quem lhe fizesse as vezes, e dava a imagem a beijar.
por causa dos micróbios, limpava os pés com um lenço,
de cada vez que mudava de boca.
mesmo ajoelhados pensávamos nos micróbios
que ficavam na cambraia
e fazia alguma impressão, mas deus era grande,
a ressurreição exaltante, e o vinho fino lá de casa
um “rodo” do melhor. corriam as doçarias,
o sobrescrito deslizava directamente no saco das esmolas,
e a campainha estremecia, a alvoraçar-se
outra vez fora da porta, anunciando-se a outros lares.
ninguém chegava a sentar-se, mas o padre fazia alguma cerimónia
e detinha-se a conversar um bocadinho,
com a maior das civilidades canónicas.
durante a tarde, o badalinho argentino
da campainha prosseguia, em tlintlins,
ora mais perto, ora mais longe,
até o timbre esmorecer de todo, a sumir-se com o casario
na noite. as flores da soleira iam murchando devagar
e dizia-se que os do compasso regressavam
a casa, quantos deles bem bebidos,
com os pés a doerem de verdade.
não me valeu de nada:
sou um descrente empedernido.
mas lá que era bonito, tocante, familiar,
colorido, matinal e sempre esperado,
lá isso era,
e sabe ainda a risos soalheiros
e aos perfumes leves de domingo
em abril, e as amêndoas, doces de ovos,
e aos pais ao pé de nós, e a vinho fino.