Ponte(s)

Queimei-as. A todas. Estou sozinho nesta ilha abandonada. Sem escapatória. Os precipícios que a cercam não me permitem saltar para as águas que a envolvem em busca de salvação. O mar revolto esmagar-me-ia contra as rochas afiadas, de qualquer modo. Talvez fosse o melhor a fazer…

Toda a minha existência é marcada pela miséria. Nasci, indesejado, fruto de um mero erro logístico. Penso que, mesmo desejado, não teria sido bafejado com destino melhor. A vida divide os homens em dois: os abençoados e os amaldiçoados. Sou um dos últimos. Nada fiz de bom com a minha vida e ela pouco melhor fez por mim. Não farei falta. Nem número de estatísticas serei. Para isso alguém teria de sentir a minha falta. A minha ausência.

Não tive talentos. Nem dons. Nem a mínima habilidade. Fui um inútil. Bem, ainda o sou. Limitei-me a existir. Um ser que nunca foi. Um ser que nunca será. Sempre pensei demasiado. Nunca consegui dizer bem o quê. Não percebia… Os sonhos atormentavam-me. Manchavam-me as noites, pregando realidades abstratas. Sonhos de felicidade, sonhos de esperança. Faziam-me crer que a alegria existia, que estava lá. No momento em que despertava da minha ilusão, sentia-me ainda mais miserável.

Nunca ninguém tentou acreditar em mim. Largaram-me, a um canto, como um animal moribundo, na esperança que eu morresse. Ou desaparecesse para o fazer. Sem barulho. Um desaparecimento silencioso, sem causar incómodo. E assim sofri em silêncio. Não sei quanto tempo. Chega a um ponto em que o tempo é um número. Perde o seu valor real, deixa de ser sentido. Mas hoje isso acaba. Hoje não sofro mais. Ponho um ponto final a isto…

Procurei Deus. Não o encontrei. Na Igreja, achei pouco mais que um ritual mecanizado. Vazio. Desprovido de alma. Um conjunto de regras que comandam um rebanho. Um exército sem rosto, criado quase por prazer sádico de algum génio maquiavélico. Depois procurei-o nos outros. Bati às portas e recebi desprezo. Fui ignorado pelo olhar de superioridade (nojo, até) que os outros me lançavam. Concluí, então, que Ele não estava lá. Procurei-o em mim. Vazio como sou, não achei nada cá dentro. Só dor. Mas nunca medo. Nunca tive medo da morte… nem da vida. Aprendi que só devemos temer o que conhecemos. E eu não conheço nenhuma.

A ciência também não ajuda muito. Primeiro porque não a percebo. Em segundo lugar, não me reconforta. Não me dá uma razão para viver. Nem, no mínimo, algo por que morrer. As suas verdades absolutas e testadas de nada servem ao meu triste caso. Não estou perdido. Não é possível estar perdido se não tenho caminho. Não tenho ponto de partida. Nem ponto de chegada. Esgotei todas as saídas.

A chuva, torrencial, cai do céu. Conduzi o meu carro até uma ponte. Esta ponte. Espero que a ironia dê algum sentido à minha morte. Isto é, se pudermos chamar morte ao término da existência de algo que nunca soube o que foi viver.

Estou sentado na beira da ponte, tão velha como os homens que a fizeram. Hoje é mais ruína que obra, já ninguém a atravessa. Na minha mão direita tenho o meu último charuto. O último que também foi o primeiro. Olho para o rio e procuro, naquela última esperança dos que estão prestes a abraçar a morte, uma razão para viver. As águas gélidas continuam a correr. Não param por mim. Nem o meu reflexo se nota. Sou apenas uma nódoa, uma sombra ocultada pelos pingos de chuva que não param de cair.

Da algibeira do meu sobretudo retiro o revólver. Sinto o metal frio, pesado, na minha mão. Está carregado. Seis balas. Sem roletas russas. Coloco a arma junto à têmpora. Sinto aquele frio junto à pele. A minha mão não treme. Não fecho os olhos. Pressiono o cão e carrego no gatilho… nada. Não sinto o calor. O cheiro a pólvora não paira no ar. Ainda respiro. A arma, aquele miserável instrumento da raiva humana, encravou. Nem na morte sou feliz.

Nem vale a pena bradar aos céus. Viro costas ao local da minha morte e encaminho-me para o carro. É neste momento que, sob o peso da chuva que desabava daquele escuro firmamento, a ponte desaba. A última ponte que se mantinha de pé. Aquela com a qual eu nunca tinha contado. Caio ao rio e sinto o frio mortífero a invadir-me o corpo. Deixo-me levar pela corrente. Debaixo daquela escura parede móvel de água já sinto o ardor nos pulmões, que me pedem ar. Está para breve…

A água, por fim, entra. Sinto o frio a ocupar-me. Dor. Mais uma vez, dor. A única coisa que sou capaz de sentir. Acabei. Deixei de existir. Passei a ser o que sempre fui – nada. Um ser que não foi. Um ser que nunca seria.

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Francisco Caetano, 11.º Ano A

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