Passava apressadamente, naquele dia cavernoso de fevereiro, num corredor nobre do conservatório. Como sempre, o cheiro do soalho e da chuva, que parecia engolir a janela, fazia-me entrar num mundo de Romance e Utopia, de uma arte desenfreada e prazerosamente bela. A poesia em música, não a poesia das palavras mortas, não; a verdadeira poesia, a dos murmúrios, insurgia sobre o meu Ser, tal como na primavera surge o primeiro canto do melro por entre a erva salpicada de orvalho frio e translúcido, como uma suave lágrima de esforço, criada pelo zelo esforçado dos Anjos.
Passava por entre uma alegria e encontrei um amigo ou um conhecido, pronto. Às vezes temos o hábito duvidoso de falar uma vez com uma pessoa e de a considerar amiga. Isso deixa-me furioso. Tinha feito uma prova no início do mês, com ele. Tive 18. Ele tirou 12 ou 13, não me recordo. Quando passo, ele solta umas palavras invejosamente concebidas e naturalmente pouco simpáticas. Mas não lhe liguei, não fui capaz de ouvir um som tão mísero e fútil, porque os meus olhos entontecidos viram o mel e a minha boca sentiu por antecipação o sabor do mais clássico. Vestia azul, azul-escuro aveludado no casaco e nas calças, e uma camisa branca de seda, não mais sedosa e doce que a sua pele branca e simplesmente intocada, virgem e repleta de pureza. Ela era todo um sonho primaveril. Sorriu para mim quando percebeu a sinestesia que me atormentou e elevou. Os cabelos castanhos e os olhos claros levantavam mais intensamente o destino da lua, adormecida no soalho, de uma noite de amores. Ah… como ela era tão bela… como as flores se curvavam perante delicadeza inocente tamanhamente conseguida.
Porém, a minha parte menos lírica percebeu o seu namoro. Ela nos braços podres e enormes daquele ofender de alma… E, com um sorriso mais apagado, aquela rapariga pediu-me desculpa. Eu senti. Senti que manteríamos o chamado Amor Platónico. Não tenho que lhe tocar para saber como seria o seu toque. Simplesmente prossigo, e no momento prossegui, sem lhe atribuir ou lhe saber um nome. As coisas grandes não têm nome. São entidades de vida. E ninguém dê à Morte capacidade de não ter nome. Porque a Morte tem nome. Só não morri para saber qual é.
E, no leito da sua cama de faia, eu esqueci-a por momentos, sem nela me deitar. Simplesmente porque no meu berço de pau-brasil adormeci sem ela. Sou obrigado a esquecer-me, como num abismo, porque o caloroso pau-brasil nunca se deu com a faia nórdica.
Francisco Pinheiro
(29 de fevereiro de 2016)
9.º D