“O Portugal futuro é um país/ aonde o puro pássaro é possível”
Ruy Belo
Nem consigo acreditar que já passaram dois anos. Era uma manhã de nevoeiro e eu ia apenas comprar pão na padaria da esquina. Ainda sonolenta, passei pelo pequeno largo onde habitualmente encontro três sem-abrigo, embriagados, a dormir enrolados sobre o seu próprio corpo no estreito banco.
Mas não, nesse dia não: nem embalagens de vinho barato do Minipreço estavam esquecidas no chão, nem o cheiro azedo invadia as minhas narinas. Continuei o meu caminho, tomei particular atenção ao jardim do largo — nunca dantes aproveitado—, que estava cultivado não só com flores, mas também com plantas de ervilha. Ao fundo, reparei que havia um grupo de três homens a trabalhar na terra. A curiosidade tomou conta de mim e aproximei-me, esfreguei os olhos mais uma vez. Eram os três alcoólicos que, desta vez, estavam a trabalhar na terra. Disse “Bom dia!”, mas era para mim um estranho dia, como se aqueles homens, para quem a embriaguez era uma realidade certa e constante, nesse dia tivessem evoluído.
Já me tinha desviado do meu objetivo principal — comprar pão. Os meus passos lentos procuravam respostas. Prestes a chegar a passadeira, fiz o meu ritual habitual — olhei para a direita, olhei para a esquerda — e nem um único carro. Olhei mais uma vez: nem o som do motor fazia parte da sinfonia da minha cidade naquele dia. Não podia acreditar que a tradicional cidade de Vila do Conde tinha adotado uma mobilidade sustentável, pois, apesar de não ouvir nem ver carros, passavam por mim várias bicicletas e uns estranhos autocarros que não faziam barulho. Atravessei a rua, deslumbrada e fascinada com aquele panorama. Já estava a chegar, quando reparei numa loja/oficina que nunca dantes vira. Lá dentro, vi vários jovens e algumas senhoras já de idade a trabalhar. Alguns a fazer moldes, outros a coser, outros a desenhar, mas todas as tarefas eram realizadas a partir de tecidos reutilizados. Delicadamente, aproximei-me da montra, para observar detalhadamente o interior do espaço, quando vi a Célia, a secretária da câmara municipal, a coordenar aquela oficina, e o mais impressionante, com um grande sorriso de entusiasmo.
Realmente, tudo naquele dia era estranho, mas de uma boa forma. Finalmente, chegara ao meu destino: a padaria. Pedi oito pães e lá mos deram num pequeno saco de pano. Subitamente, ouvi um bom-dia, voltei-me e não podia acreditar… A Dona Regina estava sentada no café a estudar. Esfreguei rapidamente os olhos e, efetivamente, confirmava-se: a Dona Regina, a senhora já de sessenta anos, que nem o 9.º ano tinha, estava a estudar agricultura sustentável com um computador em cima da mesa. Seria este um país de oportunidades?
No regresso, não consegui evitar reparar no sorriso que as diferentes pessoas transportavam. Como se tivesse chovido felicidade no dia anterior, havia uma presença mais ativa, mais alegre. Deparei-me, igualmente, com uma quantidade significativa de cartazes, não só de carácter político, mas também de muitos grupos de jovens com mensagens inspiradoras e cativantes, muitas com medidas progressistas e ambiciosas. Um pequeno sorriso escorregou da minha boca. Estaria mesmo num país com uma população interessada e participativa na política e nas decisões tomadas para o bem-comum?
Apesar de nós, portugueses, sermos conhecidos pela nossa simpatia, temos esmorecido ao longo dos anos, mas naquele dia era como se Portugal tivesse reflorescido, a primavera tivesse chegado. Logo que cheguei a casa, peguei no computador e abri o Público. Como poderia no nosso país não haver uma única notícia sobre corrupção política. Para mim, só poderia ser fruto da eficiência.
Inevitavelmente, tinha de resolver este mistério que tanto me despertava curiosidade. Falei com a minha mãe, com o meu pai e com o meu irmão. Não notei muitas diferenças, a não ser uma certa leveza por parte da minha mãe, que tinha um ar menos cansado, e uma felicidade assustadora pela parte do meu irmão, que, com apenas 15 anos, construíra a sua própria empresa. Este não podia ser o mesmo Portugal em que crescera; efetivamente, não era. Era um país onde toda a gente tinha uma função e contribuía para o bom funcionamento da sociedade, onde estudar era incentivado e era um elevador social, com um mercado de trabalho dinâmico e flexível; um país onde os jovens estavam ansiosos por entrar no mercado de trabalho e onde a formação contínua não era um requisito, mas sim um incentivo; uma sociedade em constante formação, em constante movimento.
Tomei particular atenção, mais uma vez, ao meu irmão, que estranhamente não estava a estudar para um teste, mas sim a preparar-se para ser moderador numa conferência que organizara com os colegas. Os seus olhos, que habitualmente estavam repletos de cansaço, eram agora iluminados, atentos e brilhantes, mas não mais do que o futuro que o esperava. Pediu-me ajuda para criar um cartaz para a promoção da sua conferência nas redes sociais. Não hesitei. Era isto que Portugal agora valorizava: a cooperação.
Portugal era irreconhecível. Seria mesmo Portugal? Não era, mas pode passar a ser. Não era de todo surreal. Era apenas um sonho de uma adolescente desesperada pela mudança do país que ela tanta ama, ansiosa pelo progresso. Porém, tal não é possível se a participação da população, em particular dos jovens, no panorama político for cada vez mais passiva e decadente. É necessário participar, discutir e evoluir.
Espero um dia viver num Portugal mais perto da minha utopia.
Lia Forman 11.ºC