Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo,
E ao beber nem recorda
Que já bebeu na vida,
Para quem tudo é novo
E imarcescível sempre.
Coroem-no pâmpanos. ou heras. ou rosas volúveis,
Ele sabe que a vida
Passa por ele e tanto
Corta a flor como a ele
De Átropos a tesoura.
Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
Que o seu sabor orgíaco
Apague o gosto às horas,
Como a uma voz chorando
O passar das bacantes.
E ele espera, contente quase e bebedor tranquilo,
E apenas desejando
Num desejo mal tido
Que a abominável onda
O não molhe tão cedo.
19-6-1914
O Espetáculo e o Espetáculo do Mundo
Ricardo Reis. Ficção sobre ficção. Poeta, estoico, epicurista, subjetivo. Entra em palco com ar distinto. A maneira como segura as malas transmite-nos a indiferença de sequer ter malas na mão. Saramago veio incomodá-lo: veio obrigá-lo a sair do Brasil com algo nas mãos, em lugar de nelas não ter nada. Veio retirar-lhe a «vida suspensa» que tinha depois da morte de Pessoa. Bem devia querer Reis estar suspenso no tempo e no espaço, mas Saramago quer arrastá-lo para uma trama em palco, que não dá lugar para nenhuma suspensão na mente do público que a observa.
Por vezes, como diria Alberto Caeiro, o espetáculo do mundo é ele não ter espetáculo nenhum. Porém, percebi que, desta vez, este espetáculo a que assisti era a visão completamente oposta desse nada, a visão de que precisava para encontrar a tensão e a emoção, o espetáculo que quero, muitas vezes, contemplar. Essa força de que falo estava presente nos beijos de Ricardo Reis e de Lídia, que provocaram o espanto geral da plateia, e na cor vermelha que apareceu na primeira provocação feita a Reis: o deixar cair a indiferença perante o corpo de Lídia. Fui sensível ao simbolismo do vermelho e da rosa branca trazida por ela na sua bandeja até ao quarto do «senhor doutor». Era a rosa dos jardins de Adónis, como no poema recitado por Reis, e a musa pobre, desfavorecida e representante do analfabetismo salazarista, bem à maneira de Saramago, tão bem caracterizado na peça como apoiante incondicional dos mais vulneráveis. Considero isto ao observá-lo quando lia o jornal e se indignava, batendo freneticamente no papel, e enquanto ouvia as queixas de Lídia, oprimida pela sua condição de criada de hotel. A expressividade de Saramago lendo as notícias, confrontando Reis com elas, irritado perante a apatia do seu interlocutor, foi amplificada pela impressionante cena das miseráveis ruas lisboetas, cena das tosses secas e da fome, tudo gritado desesperadamente aos ouvidos do público e de Reis. Estava ali um excelente trabalho de som e imagem, assim como de luminosidade, que era nenhuma, já que se queria a sala escura como a pobreza. Uma vez mais, o espectador arrepiou-se. Era impossível a indiferença.
Falando em imagem, devo notar a caracterização das personagens, em particular a de Fernando Pessoa, de fato poeirento e com o mesmo ar de educação extrema das fotografias. A poeira do túmulo, muito bem pensada, transmitiu-se a ideia da decadência do esquecimento trazido, inevitavelmente, pela morte, que Reis tanto teme. Este Fernando Pessoa, talvez um pouco para levar Reis a não pensar tanto nos seus temores, perverte o sentido da morte e transforma-o numa piada. Aí está, a meu ver, a função deste Fernando Pessoa, que fala para o seu heterónimo como para um filho. Vem avisar Reis de que Saramago o quer matar depois de toda a provocação com o jornal, o amor das mulheres, e com o mundo no qual ele não tem de querer estar ativo. Começa, neste ponto, uma espécie de guerra entre os dois autores, imaginada pelos atores, pois não está no romance, mas que não deixa de ser uma ideia acertada, já que a personagem é sempre vista como uma propriedade de quem a cria. O conflito de posse entre Pessoa e Saramago foi, provavelmente, a altura que mais arrancou os sorrisos da plateia, porque, para que Pessoa se voltasse a apropriar de Reis (sem sucesso), teve de espernear e de usar a sua face para exprimir a dificuldade que era lutar contra Saramago. Chega, desesperado, a pedir, a suplicar, que Saramago escolhesse qualquer outro seu heterónimo que não o Reis. Para mim, esta frase foi aquela que mais refletiu a posição de Pessoa acerca do espetáculo que estavam a fazer com Reis e, efetivamente, penso que ninguém nunca terá pensado no que pensaria Fernando Pessoa sobre todo o romance e sobre o novo Reis. Foi este um dos aspetos inovadores deste teatro, um elemento inesperado para a audiência. Mais ficção sobre ficção. Subjetividade e originalidade.
Há, ainda, algo que vai murchando durante todo o espetáculo, uma pessoa que também tem a vida suspensa na incerteza de uma cura: Marcenda, vestida à moda dos anos 30, como uma atriz do cinema da época, olhando para a plateia com olhos vagos, tristes e distantes. A expressão dos seus olhos deve ser elogiada, pois provocou no público a compaixão pela sua mão paralisada. O facto de não ser aquela que mais aparece em palco mostra essa mesma tristeza, e tal foi bem pensado. Mesmo os seus beijos mais contidos entre ela e Reis, em comparação com a intensidade dos de Lídia, ilustram as diferenças do espetáculo do mundo e a dor de Marcenda.
Em toda a peça, verifico algo muito interessante e que nunca tinha visto em teatro: a captação da satisfação do escritor a contemplar a própria ação que cria na sua cabeça, como se a ficção fosse real. Saramago, enquanto personagem, tanto é o sábio espectador, como um participante ativo naquilo que imagina. Foi esta uma outra perspetiva sobre quem é Saramago, uma outra surpresa, visto ser alguém que não esperava encontrar em palco. Esta peça, da forma como foi escrita, transmitiu-me a ideia de que contemplar o espetáculo do mundo pode ser feito mesmo quando tal não existe. Saramago, a personagem, rompe com a indiferença e mostrou até que podemos intervir naquilo que imaginamos e foi imaginado por outros sem estragarmos o que foi feito.
Isto porque Saramago não mudou Ricardo Reis. Apenas exteriorizou um pouco da sua raiva pela sua indiferença em livro e, agora, numa peça de teatro, que parece ter criado um mito em torno do escritor enquanto pessoa.
Reis não está diferente. Está de novo apático, só, desinteressado pelo seu próprio filho. E Saramago, mesmo para não o estragar, acredita que a única coisa a fazer é matá-lo. O que não pode continuar é a vida suspensa de Reis. Reis também não pode aguentar um filho. No fim, ri-se Saramago, perguntando-se acerca do que pensará a avó Dionísia quando vir o neto Pessoa com Reis. Foi uma bela maneira de terminar.
E só faltava saber o que pensaria a avó Dionísia da mesma peça de teatro. Quanto a mim, está muito bem conseguida, na medida em que deixou passar a mensagem de Saramago no seu romance, tanto acerca da história de Reis e acerca de quem ele era realmente enquanto pessoa (isto é, não apenas como escritor). Elogio a brilhante adaptação do texto, que não era de todo o mais fácil de transmitir em palco, e a intensa interpretação da personagem Lídia, de quem todos tivemos pena, o cómico Fernando Pessoa, o provocador e inquieto Saramago, a unidade do espetáculo, a expressão apagada de Marcenda, e o indiferente Reis, que, algumas vezes, se mostrou preocupado e sensível. Elogio a forma como leu os seus poemas.
Tenho curiosidade em saber como tudo isto ficaria num filme. Aquilo que considerava uma dificuldade tornou-se natural, como as mudanças de cenário e as cenas amorosas entre Lídia e Ricardo Reis, o que acrescenta valor aos atores.
Assim deve ser o espetáculo do mundo!
Margarida Pereira, 12.ºA