
Alicŭbĭ adv. Em qualquer parte, em qualquer lugar.
Alicubi, 12 de maio de 2040
Faz hoje uma semana que cheguei a Alicubi e pude acompanhar a vida desta sociedade utópica que imaginei há vinte anos. Naquela altura, pareceu-me um sonho impossível de realizar. Que lugar na Terra poderia estar imune a todos os vícios que acabaram por corromper a humanidade? Que lugar na Terra a poderia resgatar a pureza, a característica que Deus nos incutiu aquando da nossa criação? Terei eu sido atingido por uma visão profética quando imaginei esta sociedade, ou seria apenas uma pequena pista do meu futuro?…
Tenho de confessar que cheguei a Alicubi de forma furtuita, uma vez que, cinco meses depois de ter partido de Portugal, o meu veleiro foi arrastado a uma praia de areia branca, como eu nunca tinha visto, rodeada por um mar tranquilo e cor de esmeralda, digno de um paraíso. Tinha passado a ilha de Madagáscar há cerca de sete dias, mas era, ainda, muito cedo para já ter atingido o Sri Lanka, de forma que estranhei o súbito atracar do navio. Olhei para o relógio e vi que eram onze horas, o que fez com que eu optasse por sair do barco e fazer um passeio de reconhecimento pela ilha, especialmente por aquela cordilheira de montanhas, que me tinha chamado, e de que maneira, a atenção. Tive um momento de déjà vu, como se já estivesse estado naquele lugar, noutra dimensão. Ora, sendo eu apreciador de todo o tipo de teorias de viagens no tempo e um estudioso das teorias de multiversos, pensei que fora transportado para outra dimensão enquanto dormia. Decidi adentrar-me pela praia, com o intuito de colher alguma fruta para o meu almoço. À medida que me ia afastando do mar, ficava cada vez mais admirado perante a multiplicidade de espécies que ia encontrando, desde papagaios e araras a lémures e pequenos macacos. A certa altura, comecei a encontrar habitações das mais modernas e amplas, com vastos jardins, onde crianças jogavam à bola, algo que nunca esperei encontrar ali. Confesso que, no máximo, esperava encontrar uma civilização indígena, totalmente deslocada do progresso das civilizações atuais. A certo ponto, cheguei a um largo com uma fonte, onde aglomerados de pessoas se encontravam em esplanadas a almoçar, acenando-me quando passava por elas, como se fosse um amigo de longa data.
Subitamente, um senhor já com alguma idade abordou-me:
– Olá, Gonçalo! Fizeste uma boa viagem?
Fiquei surpreendido, mas também assustado. Como é que ele sabia o meu nome? Ao aperceber-se da minha reação, o sujeito desatou a rir, enquanto eu me encolhia, totalmente constrangido com a situação. Aí, o senhor afirmou que eu tinha chegado a Alicubi, sim, essa mesmo que eu sonhara quando era um adolescente. Percebendo que estava a falar com alguém bastante importante, decidi arriscar e perguntar como é que eu tinha ido ali parar. O “ancião” explicou-me que a ilha não se encontra em nenhum mapa, de forma a não ser encontrada pelos Homens, uma vez que se trata de uma sociedade secreta. Estes transformariam a ilha num local turístico ou, simplesmente, desvirtuá-la-iam dos valores que a fundaram: a liberdade, a solidariedade, a fraternidade e o amor. Depois de perceber que “as portas” de Alicubi se abriram apenas para mim, quis compreender o funcionamento e o dia a dia desta sociedade. Não me foi indicada a data da fundação nem o fundador, mas foi-me explicado que Alicubi foi criada com o intuito de salvaguardar a inocência humana e afastá-la do crescente egoísmo. Para que os habitantes desta sociedade não fossem corrompidos, o dinheiro deixou de existir, para eliminar a ganância, pois todos eram iguais e todos poderiam ser o que quisessem, baseando-se sempre na fraternidade entre cidadãos. Tal como na Pré-História, havia, dentro das comunidades, recolectores e caçadores, já que aqui todos trabalhavam para o bem comum. Outra dúvida que eu tinha era acerca do funcionamento da governação da sociedade e, dado que não havia um código legal, como eram geridas situações pontuais, como a introdução de uma disciplina nova no sistema de ensino, um trabalho novo ou o horário de funcionamento dos estabelecimentos comerciais, por exemplo. Edmundo, o “ancião” que me recebeu como se um velho conhecido se tratasse, explicou-me que em Alicubi existia uma democracia, o melhor sistema político, dizia ele, que respeitava o verdadeiro significado da palavra – demo (“povo”) e cracia (“poder”). Como o poder cabia ao povo, todos os domingos, entre as cinco e as sete da tarde, a população de Alicubi maior de 21 anos, reunia-se no anfiteatro, de forma a aprovar ou a rejeitar todas os projetos de lei apresentados pelo parlamento nessa semana. Caso o projeto fosse aprovado, entraria em vigor o mais rápido possível, no máximo uma semana, se estivéssemos a falar de casos de fácil resolução, como, por exemplo, o período mínimo de almoço diário, etc. Se o projeto fosse mais complexo, ou até rejeitado pela assembleia comunitária, teria de ser reformulado, para voltar a ser discutido no domingo seguinte. Embora pareça moroso, devido ao espírito de entreajuda e espírito coletivo, raramente as leis eram reprovadas. Aliás, até àquele dia, apenas três projetos tinham sido chumbados, e todos eles por unanimidade, já que pretendiam reduzir o número de horas do ensino dado aos jovens, que é a parte fundamental da educação alicubense. “Só com uma base cultural vasta é que um cidadão se pode desenvolver de forma plena”, lia-se no relatório de avaliação do documento.
Com o decorrer da conversa, fiquei tão distraído que nem me apercebi que já eram quase 14 horas. Sentia-me esfomeado. Edmundo, percebendo-o, levou-me a um restaurante que ele dizia ser divinal. E realmente foi. De tarde, explorei a cidade, desde a biblioteca até aos campos desportivos, passeando um pouco pela praia para descontrair. Ao fim da noite, fui assistir a uma representação de Hamlet no teatro da cidade, encenada e protagonizada pelos jovens que estudavam a disciplina de teatro, que privilegiavam a recriação de peças clássicas, embora também encenassem as mais recentes, como The Importance of Being Ernest, de Oscar Wilde.
No fim do espetáculo, sentia-me exausto e, então, mostraram-me a minha casa, que tinham construído para a minha chegada, mas cuja arquitetura final estava sujeita a algumas alterações, se assim o desejasse. Adorei o espaço e fiquei comovido pelo espírito de ajuda e amor que aquelas pessoas manifestavam umas pelas outras, até mesmo para com um desconhecido como eu.
Gonçalo Teixeira, 11.ºC