Num abril primaveril emergiu, dos escombros do mundo, Flora. Um broto esquálido, alvo e luminoso percorreu lares diversos. Ora conviveu com um avô que perdera toda a sua família às custas de um genocídio, ora chegou a ser parte de uma família de lobos que a adotaram. Passada de mão a mão, Flora nunca teve, efetivamente, um lar. No entanto, sentia-se sempre acolhida pelos ventos húmidos que rugiam nas ruas sós e pelo sol que a nutria e a mantinha sã.
Muitas vezes, Flora falava com as flores, com as plantas e os arbustos. Acometida por uma solidão irremediável, os diálogos que compartilhava com a natureza eram cada vez mais densos. Quando Flora sorria para as ramagens, elas moviam-se, levemente, em sua resposta.
Com o passar dos ciclos da chuva e das fases lunares, a menina, certo dia, deparou-se com o seu reflexo na água corrente. Não era mais uma “menina”. As pinceladas leves que o vento criava sobre o riacho desvirtuavam a sua imagem. O pouco que se mostrava aparente revelava a figura de uma jovem, florescendo na idade adulta.
Tinha os olhos cor de mar e os cabelos cor de terra. As suas pernas assemelhavam-se a troncos e os seus braços, suaves ramos de uma árvore frutífera. Os seus seios fartos eram maçãs e as suas nádegas, grandes melancias. A sua voz era como o cântico dum sabiá. Corria pelas suas veias um sangue efervescente, limpo.
O seu sangue, formado da água que lhe adentrava pelos lábios carnudos, avermelhados e molhados, tinha a energia de um batalhão ou a força com que troveja uma tempestade — sangue este que se ausentava do seu abrigo todos dos meses, à espreita de um novo refúgio. O líquido escarlate invade a natureza, edifica novas vidas, nutre tudo aquilo que está à espera de receber vida.
No momento em que Flora avistou, de relance, o seu reflexo, testemunhou a imaterialização da sua pessoa. Todos os elementos que participavam do seu organismo eram efémeros. O sangue escorria-lhe por entre as pernas, as lágrimas através dos olhos, o suor pela pele, os fios de cabelo caíam ao vento, as unhas novas cresciam a cada mês, e a pele renovava-se, como a de uma cobra, constante e invisivelmente. Flora era invariavelmente variável. A sua vivacidade residia, pois, na capacidade de se regenerar. Flora era o fruto do seu meio, Flora era nova a cada dia e a cada ar que recebia, sempre inusitado, ao inflar-se-lhe os pulmões.
Passados os anos, Flora deixava-se levar pelos ares. Quando chovia, molhava-se. Quando o dia era ensolarado, bronzeava-se. Quando as folhas de outono caíam, caíam também os seus cabelos. Com a trizteza do outono, depunha-se a sua felicidade e instaurava-se-lhe o pranto. Respirava ao mesmo ritmo das ondas do mar e caminhava ao pulso das cachoeiras.
Quando chegou a sua hora, Flora desfez-se em partes incalculáveis. A sua carne já não era mais carne. Flora regenerou-se em dezenas de frutos, de legumes e ascenderam filhotes de várias espécies a partir dos elementos que costumavam compor a sua carne e o seu espírito. Ela desvirtuou-se pelo ambiente e, numa leveza infindável, a sua solução fundiu-se em vidas novas. Flora tornou-se eterna.
Luiza Toniolo, 11º D