“2001: Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick

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α):Sobre o Realizador

Como desenvolveremos na secção seguinte deste ensaio, não consideramos que a experiência de vida ou personalidade do “autor” de uma obra tenham peso concreto na mesma. Estas propriedades do “autor” têm tanta relevância no caso de uma obra artística como as de um investigador numa descoberta científica, isto é, pode suscitar interesse naqueles que se atraem pela obra porém não é crucial (nem particularmente vantajoso) para a sua compreensão. Creditamos, então, esta obra ao Criador da Natureza e a sua descoberta a Stanley Kubrick.

β) A Natureza da Arte

Iremos principiar indicando que nos integramos numa perspetiva Objetivista da Arte, procurando articular o Formalismo e a Teoria Mimética da Arte.

Arte será tudo aquilo que, apelando aparentemente à experiência, nos permite aceder à Realidade que se estende além da experiência humana (que é puramente conceptual). Desta forma, a Arte será, axiomaticamente, algo superior às suas partes, quando estas são analisadas individualmente. A Experiência é uma das ferramentas que o Homem, na atualidade, mais utiliza para inferir sobre o real. A sua fidelidade, no entanto, pode ser facilmente posta em questão. Todos nós temos, com certeza, memória de um instante no qual os nossos sentidos nos falharam. Ainda mais, podemos conjurar mentalmente várias situações plausíveis nas quais a experiência levaria a falsas interpretações do Real. O exemplo clássico da experiência humana a traduzir incorretamente a Realidade é o “Génio maligno” de Descartes que induz o Homem numa “realidade” falsa, que este experiencia diariamente, acreditando no que regista com os seus sentidos. Descartes recorre a este exemplo para demonstrar como o indivíduo pode ter como certo apenas a própria existência.

Se este é o caso, então segue-se (para todos menos os Empiristas, que preferem a viabilidade do modelo probabilístico da Experiência à abstração Racionalista) que devemos procurar uma alternativa para aceder ao Real que não conduza tão frequentemente a erro. Surge como alternativa razoável a ponderação (Racional) da natureza dos objetos conceptuais, procedendo então na dita abordagem “Racionalista”. Acreditamos que a Arte não passa de um esforço de traduzir a complexidade conceptual da análise Racionalista numa experiência deliberada, não adulterada pelo “background” dos sentidos humanos. De uma forma sucinta, a Arte é uma tentativa de traduzir um ou mais elementos da Natureza tendo o cuidado de evitar os “defeitos” dos sentidos humanos. Será, consequentemente, algo fundamentalmente mimético, não por imitar a aparência natural dos objetos, mas por imitar a sua essência abstrata que “escapa” aos sentidos. Podemos questionar qual a necessidade de traduzir uma Realidade conceptual (à qual conseguimos aceder através da Razão) numa Experiência que, em si, pode eventualmente estar sujeita aos falíveis sentidos humanos. Aqui surge a vertente mais prática da Arte: esta tem a facilidade de comunicar (muitas vezes recorrendo ao apelo emocional que, em si, não deve invalidar uma reflexão) através de uma linguagem que é simultaneamente cuidadosa (ao contrário da Experiência Bruta – o acesso direto ao Natural) e concreta (ao contrário da abstração da Razão pura). A Arte será, desta forma, dos melhores métodos de comunicar um aspeto da realidade.

Define-se a boa Arte como Bela, na medida em que estes conceitos se implicam mutuamente. A Arte, que será então nada mais que uma chave para a Realidade, deverá procurar avaliar e transmitir a natureza desta Realidade de uma forma simultaneamente apelativa e que não esteja suscetível aos influxos da perceção humana. Conclui-se assim que a Arte que faça isto é, com efeito, Bela. A Beleza da Arte reside nela como um objeto puramente abstrato que possui apenas uma “sombra” experiencial. Esta “sombra” consiste na forma de uma obra de arte: na sua proficiência técnica e superficial, desprovida de sentido para além da sua natureza apelativa às emoções primordiais humanas. Consiste nas encenações geométricas, harmonias audiovisuais e prosas vigorosas que suscitam uma resposta positiva e direta da nossa dimensão corpórea. Não pretendemos, com isto, depreciar a forma, simplesmente afirmar que, privada de contexto (algo que é impossível no trabalho artístico, pois existe sempre uma projeção conceptual sobre a obra), esta perde valor. Ao mesmo tempo, para adquirir uma estrutura mais apelativa, a vertente conceptual da obra deve adotar uma forma adequada e elegante, congruente com a sua mensagem. Coerência entre mensagem e forma torna-se então imperativa para qualquer obra que procure ser Bela. É evidente que a forma terá de ser, em si, harmoniosa e apelativa para maximizar a Beleza da obra final.

Acrescentamos ainda que, segundo esta perspetiva, a intenção do “autor” é desprezável para o estatuto artístico ou valor da obra. A obra em si reside na Natureza (mesmo que oculta aos sentidos) e não é mais do que uma sobreposição de vários elementos naturais. Existe um número finito de experiências que o Homem pode ter (um número limitado de sons aos quais a audição humana é sensível, a visão humana só consegue interpretar um conjunto limitado de frequências que consiga distinguir, entre outras limitações físicas) para as quais existe um número limitado permutações possíveis. Um computador poderoso o suficiente poderia, num intervalo de tempo finito, produzir todas as obras de Arte que um humano consegue interpretar; a atividade artística comporta um trabalho principalmente seletivo. A Arte será, então, um esforço não necessariamente criativo mas transformativo- uma compilação de experiências que transcende a própria natureza experiencial, cujo Criador (se o tiver) será o Criador de tudo o que é natural e cujo “autor” (no sentido leigo da palavra) se limita a descobrir a obra, a isola-la dentro de todo ruído experiencial que existe em simultâneo na Natureza. Assim, o percurso de vida ou até mesmo personalidade de um “autor” são irrelevantes para a interpretação da obra. Ainda mais, o “autor”, tal como o “poderoso computador” referido anteriormente não necessita de ter como intenção criar uma obra artística em específico: esta pode surgir como consequência inesperada do trabalho, um resultado não previsto do processo de compilação (que poderia até ser aleatória- note-se o exemplo dos proverbiais “monkeys with typewriters” que, dando-lhes tempo suficiente, inevitavelmente escreverão todas as grandes obras literárias). Isto não priva, contudo, o “autor” de mérito, da mesma forma que a pré-existência de uma Realidade científica (ou Matemática) priva o seu descobridor de mérito. A personalidade do cientista pode influenciar o ramo no qual este prefere investigar ou mesmo a questão a que pretende responder, porém não influencia a descoberta em si como uma entidade anterior a quem a descobriu. Esta analogia alastra-se para o “autor”.

Como podemos distinguir, então, entre interpretações incorretas e corretas das obras de arte dado que a intenção do “autor” não é um critério válido? Aqui, iremos apropriar a abordagem Kantiana da experiência Estética para diferenciar interpretações discrepantes: a interpretação mais correta de uma obra é aquela que parte de uma análise desinteressada na qual o observador tem uma disposição puramente contemplativa. As divergências de opinião quanto às obras de Arte surgem do facto de vários dos participantes nesta experiência estética entrarem nela com intenções ou desejos a priori que projetam sobre a obra e, como tal, a interpretam incorretamente.

γ) Síntese da Obra em Análise

2001: Uma Odisseia no Espaço inicia no estado primordial do Homem, quando este ainda era um primata puramente irracional. A Racionalidade é introduzida ao Homem pela figura do Monólito que comunica com os primatas e lhes faculta a capacidade de utilizar ferramentas, incrementando a sua Racionalidade. A Narrativa salta para um cenário futurístico, no qual um Astrónomo de renome parte para investigar o Monólito que acabou de ser descoberto (pelo Homem consciente) numa base Lunar. O Monólito, na presença dos investigadores, emite uma onda de rádio dirigida a Júpiter. A Narrativa salta mais uma vez para a tripulação de uma nave cuja missão é chegar a Júpiter. Aqui, grande parte da tripulação é morta por um computador extraordinariamente avançado (HAL 9000). Dave, um dos tripulantes, no entanto, consegue desligar HAL e proceder na sua missão a Júpiter, cujo verdadeiro objetivo só lhe é revelado agora: responder à mensagem enviada pelo Monólito e compreender a sua Natureza. No final do filme, Dave, perante os seres mais avançados que criaram (ou se apropriaram de) o Monólito é exposto a uma “explosão” sensorial que causa a sua transcendência dos conceitos de espaço e tempo, atingindo o auge da Racionalidade do Homem: Dave é agora um “recém-nascido” que retém em si Racionalidade absoluta e que levará a Humanidade a ascender do seu estado atual de Racionalidade limitada.

δ) Estatuto Artístico da Obra

2001: Uma Odisseia no Espaço é nada mais do que a Grande Narrativa Humana: a Narrativa do próprio Homem, passando pelos relevantes passos da sua evolução Racional: os Primórdios, o Intermédio e a Ascensão. Não é por acaso que o filme referencia (musicalmente) “Assim Falou Zaratustra”: Dave, no final da obra, é o Super-Homem que Zaratustra profetiza. O Monólito em si serve não só como um dispositivo narrativo mas também como shorthand visual para o conceito abstrato de “Razão”. A narrativa do filme não se circunscreve a nenhuma personagem em particular (Dave serve apenas como representativo do Homem no seu todo): trata-se da História do próprio Homem, desde o seu início como Primata irracional até ao seu fim como algo ainda superior. Assim, verificamos que, em termos conceptuais, a obra é rica quanto ao seu subtexto.

Paralelamente, toda a obra é acompanhada por uma banda sonora adequada e efeitos visuais ainda impressionantes que elevam o filme de um ponto de vista puramente experiencial. 2001: Uma Odisseia no Espaço retém o seu espetáculo audiovisual cativante, garantindo à obra uma excelência técnica sem igual. Mais que esta competência, no entanto, é o facto da parte formal desta obra complementar (e exemplificar) as virtudes valorizadas pela Narrativa. Mais que o diálogo ou personagens (dimensões anexas de um filme), é o seu cerne visual e sonoro que comunica estes valores narrativos, concedendo à obra uma coesão que a faz ascender sobre as demais.

Não basta constatar que 2001: Uma Odisseia no Espaço é Arte, é necessário acrescentar que é o padrão de excelência que devemos utilizar para julgar toda a Arte, pelo menos dentro do campo cinematográfico. Mesmo quase 50 anos após o seu lançamento, nenhum filme atingiu tão vigorosamente esta harmonia entre sublimidade (e complexidade) narrativa e perfeição audiovisual que tornaram a obra no grande feito cinematográfico do século XX.

Bernardo Magalhães, 10.ºA

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