Foi assim a primeira mesa de encontro de escritores na Póvoa de Varzim. Manuel Alegre, ao lado de Hélia Correia, Prémio Camões 2015, e de Antônio Torres, romancista brasileiro. O tema em debate foi a literatura como catarse da existência.
«É por isso que ao falar-se de literatura como catarse da existência, eu continuo a ver na escrita uma espécie de cerimónia mágica. De purificação, de libertação, de convocação ou de exorcismo. Mas sem nunca separar escrita e vida. Não sei aliás se é a escrita que purifica (para não dizer purga) a existência, ou se é a vida que se transmuda em palavras. Parece-me que assim o entendia Rainer Maria Rilke – “os versos não são feitos com sentimentos, mas com experiências vividas, escreveu ele em Os Cadernos de Malte Laurids Brigge. Creio que, tal como ele dizia, “para escrever um só verso é preciso ter visto muitas cidades, muitos homens e muitas coisas. É preciso lembrar caminhos em regiões desconhecidas, encontros inesperados e despedidas há muito previstas (…) ”. Tudo isso é a vida e de tudo se faz o poema. Ou o romance.
Escrever, para mim, foi sempre um estado de graça. Mesmo nas situações mais trágicas, a guerra, a prisão, o exílio, as muitas despedidas e o irremediável de muitas mortes. Não tive a possibilidade (e também a rejeitaria) de ser um daqueles poetas que, segundo João Cabral de Melo Neto, se pretendem “intemporais, inespaciais e fora da História”. A liberdade, afirmou Octávio Paz, “não é uma filosofia e nem sequer uma ideia, é um movimento de consciência que nos leva, em certos momentos, a pronunciar dois monossílabos: Sim e Não.”
A minha circunstância levou-me, em certo momento, a dizer não, e a dizê-lo em verso, segundo um certo ritmo, uma certa toada, uma certa correspondência de sons e imagens. E talvez nem tanto por um movimento de consciência, mas sobretudo por um impulso, uma energia, uma confiança na força da palavra poética e na sua capacidade para mudar a vida e o mundo. Havia um grande não para dizer. Um não histórico, poético, cultural. Um não assim pressupunha talvez alguma ingenuidade e uma grande convicção sobre o poder alquímico da palavra. Havia a ditadura e a guerra colonial. Havia a mistificação da História e a urgência de dar a volta aos mitos. Havia um ritmo. Um tom cantabile que vinha dos cantares de amigo, dos cancioneiros e de Camões. Era algo que estava no ar, que se ouvia sem se ouvir. Uma música da língua e do tempo, sob a forma do não e da poesia.»
Manuel Alegre, Correntes d’Escritas, 24 de fevereiro 2016